‘Projetos de socioeducação abrem portas’

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Para Juiz Dalmir Franklin,
a punição não é a única solução.

Qual a função de um juiz? Em teoria, é resolver conflitos. Avaliar se o réu é culpado ou não. Ouvir a alegação das partes, oportunizar a apresentação de todas as provas e, posteriormente, solucionar o conflito de forma imparcial. Para o magistrado da Vara de Família de Passo Fundo (RS), Dalmir Franklin de Oliveira Júnior, 43, sua profissão vai muito além disso.

Dalmir entende que a punição não é a única solução para recuperar jovens infratores. Ele, que já foi da Vara da Infância e da Juventude, pode acompanhar o impacto da criminalidade na vida de muitos jovens, e o contato direto com a realidade o fez se envolver em um projeto que nasceu no pátio do Centro de Atendimento Socioeducativo (Case): uma banda para tocar com os jovens muitas vezes condenados por ele.

Professor do curso de direito, Dalmir teve uma longa conversa com o Educação e Debate sobre a conjuntura política, redução da maioridade penal, Escola Sem Partido, perseguição a professores, direito constitucional, questões de gênero e, claro, sobre o projeto que resultou na Banda LibertArte.

Educação&Debate- No último período, tanto em nível nacional quanto municipal, questões como os projetos de lei que seguem a linha “Escola Sem Partido” e o ataque aos estudos de questões de gênero foram muito presentes. Como você avalia essas investidas?

Dalmir- Aqui nós tratamos de um direito social, que é o direito à educação, que está no artigo sexto da Constituição. A Constituição de 88 estabelecede forma jurídica, mas constitucional que o Brasil deixa de ser um país meramente liberal e passa a ser um estado social.

O estado social é aquele que tem o dever de prestar direitos, serviços e bens, dando a todos os cidadãos uma vida minimamente digna. O mínimo para uma pessoa viver com dignidade são os direitos sociais.  Direito à educação, à saúde, ao trabalho, à moradia, à alimentação… A educação está dentro desse mínimo existencial que o estado tem que prover para todas as pessoas. Além de estabelecer esse direito social, a constituição estabelece a Liberdade de Cátedra, de ensinar e de aprender, o que configura esse direito fundamental de educação. Então, no momento em que tu restringes esse conteúdo, você fere uma cláusula pétrea da constituição.

Não basta somente dizer que o estado é responsável por permitir o acesso à educação, trata-se de garantir que essa educação seja plural, porque o pluralismo é um dos valores da constituição e, mais do que isso, a questão das vedações das discriminações, que também estão na constituição, tudo isso vai configurando esse direito à educação. O pluralismo e a liberdade são valores que transcendem todos os direitos, e o artigo 206 da Constituição fala especificamente na Liberdade de Cátedra de ensinar e de aprender, então essas propostas de vedar a discussão de questões de gênero, vedar a discussão política e ou partidária, tudo isso é evidentemente inconstitucional.

 E&D – Os professores vêm sendo atacados em diversas esferas. Ao final do último ano (2018), uma deputada de Santa Catarina incitou alunos a gravar seus professores em sala aula. Como o docente deve se portar se tem sua sala de aula invadida, ou um aluno começa a gravar sua aula com a alegação de doutrinador?

Dalmir – Eu acho engraçado isso porque o ensino, o conteúdo sempre vai ser de uma forma ou de outra ideológico. Qualquer área do conhecimento, se tu estuda filosofia ou epistemologia fica mais claro, em perspectivas de análises e questões. Na matemática, por exemplo, tem quem defenda que existe uma verdade absoluta e tem gente que sustenta que não… Sempre tem uma perspectiva de visão, de conhecimento, e que se pode optar por um ou outro.

Costuma-se dizer que a história é contada pelos vencedores, então eu não consigo compreender se a gente for dividir entre direita e esquerda, a gente pegaria os governos que tiveram no Brasil nos últimos 500 anos, que sempre foram governos mais de centro a direita, daí nunca se falou tanto dessa questão da ideologização, porque a esquerda esteve no poder por cerca de 16 anos, aí se diz que existe doutrinação da esquerda. Ou seja, são 16 anos contra 484 anos. Essa é uma coisa absurda que estamos vendo. Existe essa questão do conteúdo mínimo que o MEC estabelece e cada professor vai ter uma perspectiva sobre o conteúdo e vai ministrar aquilo.

Dentro da perspectiva do pluralismo, tu tens ideias liberais, tu tens ideias social democratas, do bem-estar social, tu tens ideias socialistas ou comunistas, eu acho que o aluno tem que ter condições mínimas de saber o que cada uma delas é. Pra mim, o mais correto é que o professor se identifique, diga seu posicionamento sim, para esclarecer o teu lugar de fala, assim a pessoa pode filtrar o conteúdo que ela vai receber.

E&D – O ministro da educação indicado pelo presidente eleito, no início do governo Jair Bolsonaro, Ricardo Vélez-Rodríguez, declarou que os brasileiros são, “na sua essência”, conservadores e avessos “a experiências que pretendem passar por cima de valores tradicionais ligados à preservação da família e da moral humanista. Como você avalia a educação nos próximos quatro anos?

Dalmir – A gente viu algumas propostas na campanha da chapa vencedora que são preocupantes. Quando se fala na questão de incentivar a educação a distância, especialmente no ensino médio, não sei se essa proposta valeria para o ensino fundamental, está retirando da questão pedagógica a relação professor-aluno, e isso eu não posso admitir.

O espaço da escola é um espaço de socialização e a socialização se dá na convivência. A relação professor aluno é uma relação que por si só já permite o ensino, o aprendizado.

Então, sinceramente, tirar isso de um sujeito em formação é algo que não imaginaria que pudesse acontecer. Eu vejo com muito maus olhos. Agora eu não sei com relação às propostas… Pelo que eu vi nas redes sociais, este senhor que deve ser o Ministro da Educação, indicado pelo Olavo de Carvalho, entende que o Golpe de 64 não seria golpe, que poderia ser comemorado, alguma coisa assim… Então eles falam de educação sem partido, mas a ideologia deles vale. A ideologia que eles pregam é possível ser sustentada. É um discurso muito superficial, muito fraco e que não permite que se aprofundem as questões.

Tem a questão do Ensino Superior, que acho que a expectativa não é boa. Temos visto um retrocesso desde o impeachment da presidenta Dilma, com a sucessão do governo Temer, de diminuição dos programas de incentivo ao ES. É discutível também se a gente deve investir, por exemplo, na questão do financiamento estudantil para o acesso ao ensino superior ou se tu deverias aumentar o número de vagas no ensino superior público.

Alguns estão falando em cobrança do Ensino Público, nível superior, que também em princípio violaria a Constituição. A gente está vendo muitas propostas de retrocesso ao que estabelece o estado social constitucional de 88, é isso que a gente está vendo, mas era uma coisa que vinha desde a campanha eleitoral, que já mostrava que a chapa vencedora fazia vários discursos contra a Constituição.

E&D – Atualmente presenciamos um fenômeno que são os adolescentes do ensino médio que se posicionam com valores superconservadores e de extremíssima direita. Como você encara esse comportamento?

Dalmir – A gente tem que pensar que vivemos num mundo globalizado e dentro dessa perspectiva do mundo globalizado, especialmente de que a informação hoje ela é muito advinda das redes sociais, existe uma influência muito grande na formação da opinião por meio das redes sociais de Whatsapp, de Facebook… é uma questão que circula por meio das redes sociais. Está se formando opinião de jovens e adolescentes por meio da internet, por meio das redes sociais.

Eu acho que é bem possível sim que esses valores estejam sendo transmitidos às pessoas mais jovens e elas acabam reproduzindo porque é aquilo que elas estão vendo. Antigamente a gente tinha uma formação que advinha dos bancos escolares e mídia tradicional, principalmente da TV na minha época, alguma coisa do jornal escrito, alguma coisa do rádio, mas principalmente a TV. Ela que formava opinião e hoje em dia a opinião é formada também e muito pelas redes sociais, então se tu consegue jogar nas redes sociais uma perspectiva e um viés ideológico, eu acho que tu forma as gerações também, forma as gerações mais novas e acredito que isso acontece no mundo de uma maneira geral.

Quando a Europa começa a lidar com a questão do imigrante há uma onda de, digamos assim, tu tem a ação, que é a vinda dos imigrantes, e tu tem a reação, no sentido de ter uma resistência vinda dos imigrantes e aí começa se construir toda uma ideia, que é uma ideia de racismo, de preconceito que já existe na sociedade. Porque já existe nas antigas gerações, que permitiu que isso acontecesse inclusive com guerras mundiais, só que agora ela vem com uma outra roupagem, com uma outra forma e isso informa as novas gerações também. Eu acho que é por aí, não sei.

 E&D – Bandido bom é bandido morto?

Dalmir – É um jargão bastante utilizado que trata de um dos sistemas que mais preocupa a sociedade brasileira, a violência urbana. A segurança pública é um tema que preocupa a todos de uma maneira geral, não só a classe média ou elite, porque a pessoa que mora na periferia também não quer ser furtada, não quer perder suas coisas que conquista por meio do trabalho. Só que a proposta é uma proposta evidentemente inconstitucional, que incita a violência.

Responder à violência com mais violência, costuma-se dizer, acaba só aumentando os níveis de violência na sociedade, é necessário romper o ciclo da violência e não pode ficar sustentando ele e dando mais violência.

É inconstitucional porque não existe a possibilidade de aplicação da pena de morte no Brasil. O direito à vida e a vedação da pena de morte também é uma cláusula pétrea. Não tem nenhuma viabilidade constitucional a questão da pena de morte, ela teria que ser rejeitada assim como a redução da maioridade pena de morte ela não pode ser, ela pode até ser aprovada, mas o penal também é cláusula penal e deveria ser rejeitada.

Os direitos humanos não podem ser velados em hipótese alguma, eu não posso pegar a maioria e exterminar fisicamente a minoria, seja bandido, seja negro, seja judeu, seja homossexual. Não pode haver extermínio físico e muito menos a desconsideração da dignidade dessas pessoas, todos são dotados de dignidade e a dignidade da pessoa humana é uma característica que nos une como raça, como espécie.

E&D – Como você vê a defesa de alguns setores de que haja diminuição da maioridade penal?

Na prática, isso representa que elas vão sair do sistema prisional muito pior do que elas entraram. Fui juiz do sistema prisional e do sistema socioeducativo dos adolescentes, então eu conheço os dois sistemas. Tenho a absoluta certeza e convicção de que é muito mais fácil dentro do sistema socioeducativo eu conseguir fazer um trabalho bom nesse adolescente para que ele volte para sociedade um pouquinho melhor do que ele entrou no sistema, socioeducativo, do que largar no sistema prisional que não ressocializa.

Quem é juiz da execução criminal no Brasil sabe que grandes presídios estão tomados pelas facções. Quem entra dentro do sistema prisional, quem é preso, entra tendo que optar por ser de uma facção ou da outra, e aí tu vais pegar um jovem de 16/17 anos e vai botar na mão da facção. Tu pegar esses jovens para botar na mão de facção e eles ficarem praticando crime na rua em nome da facção é uma coisa absurda.  Mas só quem conhece o sistema é que sabe que isso acontece, que vai acontecer.

A redução da maioridade penal é ruim para a segurança pública, ela vai piorar a violência, vai piorar a segurança pública, vai piorar os índices de criminalidade. E juridicamente ela é incondicional, ela não pode passar; se passar, o Supremo tem que dizer “está se violando uma cláusula pétrea da Constituição de 88” e retirar essa proposta do ordenamento jurídico brasileiro.

E&D – Como começou o projeto LibertArte, o que fez você se envolver com ele? Na prática, ele trouxe resultados para os jovens envolvidos?

Bom, tive a experiência de ser juiz criminal e com adulto imputável, que vai para o presídio. Então, fui estudar o direito da criança e do adolescente e achei que, em termos de violência e segurança pública, se eu trabalhar na prevenção, com adolescente para que ele não seja um maior imputável, eu tenho muito mais chance de êxito do que trabalhar já com o sujeito constituído. O sujeito que já é maior de idade é um sujeito que, pela lei, já tem sua personalidade formada. Se eu trabalhar com um menino de 12, 13, 14 anos, ele está em formação, em desenvolvimento; então, se eu fizer um trabalho aqui na base, aí eu posso evitar e diminuir os índices de criminalidade do maior de idade. A primeira questão foi essa, trabalhar com a delinquência juvenil na perspectiva socioeducativa.

Se o sujeito ainda está em desenvolvimento, ele tem mais potencialidade de aprendizado, tem a escolaridade formal dele dentro do CASE, por exemplo, se ele está em semiliberdade, ele tem que estar estudando numa escola na rua, e aí, para agregar a questão pedagógica formal da escolaridade, tu acostumas a pensar em outros projetos que desenvolva a potencialidade deles.

 Como eu gosto muito de música também, eu acabei de um sonho antigo de querer trabalhar com música e criança junto com o psicopedagogo pensando na musicalização dos internos do CASE. Na minha dissertação de mestrado em Direito, falei sobre o projeto, estudei cientificamente quais são as possibilidades e ganhos que a gente tem com a arte. Dentro da psicologia, a gente tem um conceito que é o de sublimação, que é quando toda a energia psíquica que nós temos para as coisas boas e coisas ruins, que são as pulsões de vida e as pulsões de morte, e são sempre canalizadas por um objeto.  Está entre as pulsões de morte a agressividade. Se eu não a canalizar, elas vão sempre ir para esse mesmo destino que é a violência, a criminalidade. Só que eu posso pegar essa energia psíquica e canalizar para as coisas socialmente bem aceitas, reconhecidas socialmente. E o menino, quando está tocando ali um tambor, um instrumento, ele está canalizando essa pulsão para uma coisa que é socialmente bem vista e aí permite a eles um reconhecimento diferente deles.

A sociedade os reconhece de uma maneira distinta também, então esse é outro benefício que o projeto pode dar porque tu tens que trabalhar com a autoestima desses jovens. No momento em que ele tem um reconhecimento social diferente, ele sabe que tem potencialidades que podem ser exploradas, não que ele vá ser músico, mas, pelo menos, eles sabem que existe outro caminho que não é o de ser bandido, existem outras portas. Minha ideia sempre foi de que projetos na socioeducação abrem portas para esses jovens. A adolescência é justamente a fase de assumir as responsabilidades por aquilo que se faz e o ruim é se tu não abres as portas. Se deixar aberta a porta sempre da bandidagem, da criminalidade, ele vai seguir aquele caminho, porque é o que ele conhece, que sabe que chegou lá.

A gente abre caminhos, abre portas. Quem sabe um que outro pega e aí é um crime a menos que vai acontecer, dois crimes a menos que vão acontecer, menos vítimas… Essa é a ideia dos projetos que são desenvolvidos na socioeducação.

Muitos a gente perde, é fato. Porque o que leva uma pessoa a praticar o crime, ir para a vida da criminalidade são vários fatores, então tu tirar todos esses fatores ou reverter todos esses fatores é difícil. Mas tu conseguir transformar a vida de 1, 2, 3 desses jovens que vão, justamente, trilhar outros caminhos eu acho que já é um ganho social muito grande. É um ganho para esses jovens sem sombra de dúvida, porque ele vai ter outras perspectivas, vai ter vida, vai ter outras pulsões de vida, vai ter família, filhos e vai contribuir para a sociedade.

Agora não é só para ele, a gente está pensando em termos de segurança pública, isso é política de segurança pública, é um a menos que vai estar envolvido numa quadrilha, envolvido no tráfico, que não vai fazer um assalto.

E&D – Bolsonaro ganhou, e agora?

É preciso estar muito atento às medidas do governo eleito. No que diz respeito aos direitos fundamentais, aos direitos humanos, há necessidade de continuar conscientizando as pessoas, ensinando as pessoas o valor dos direitos humanos, o valor dos direitos fundamentais e que eles não podem ser violados, que eles são cláusula pétrea da Constituição. Há uma necessidade de continuar nesse trabalho de conscientização da população sobre a importância desses direitos para que elas lutem por eles, por essas conquistas e que também se consiga formar opinião contra medidas governamentais que sejam de retrocesso ao estado social e ao estado democrático de direito.

O momento é de organização social, toda a sociedade tem que estar preparada para o governo que vem. Temos a perspectiva de um governo que fez discursos contrários à Constituição e que acabou tendo apoio popular, a gente tem que conseguir trabalhar com as pessoas conscientizando da importância dos valores da democracia para ficar atento aos movimentos do governo.

Se o governo vai extinguir o Ministério do Trabalho, tu estás enfraquecendo o direito social do trabalho, porque o executivo tem que ter uma pasta específica para cuidar da parte do trabalho que é um direito social. Então, tem que fazer movimento contrário; de repente, o governo recua, se ele continuar, tu vais para as outras arenas de debate e de discussão, muitas questões talvez devam acabar caindo no judiciário. Algumas vão ser barradas no legislativo, por exemplo, aquilo que for proposta de emenda constitucional, de PEC, para ser aprovada tem que ter 3/5 (três quintos) em duas votações, na câmara e no senado, então é um quórum alto. Talvez, muitas coisas possam ser barradas no legislativo, aquilo que for barrado no legislativo se resolve, aquilo que passar no legislativo a última defesa da sociedade e da democracia é o poder judiciário.

A gente vai ter que ver se o supremo vai ter força e vai ter autoridade para barrar eventuais medidas que violem a Constituição de 88; se fizer isso, por exemplo, será que é verdade que daí o governo vai tentar fechar o Supremo Tribunal Federal, com cabo e com jipe?

Aí a questão é: se decide fazer isso quem é da população que vai defender o Supremo Tribunal Federal para que isso não aconteça. A meu ver, é sinal de certo estranhamento e parece ser um sinal de enfraquecimento, o ministro presidente do Supremo Tribunal Federal convidar um militar para trabalhar, a gente não tinha visto isso e causou uma certa estranheza.



*Esta entrevista foi publicada no jornal impressão Educação e Debate, do CMP Sindicato (Sindicato dos Professores Municipais de Passo Fundo, Ano 3, Núm. 05, janeiro de 2019) e organizada pela Jornalista Ingra Costa e Silva.
Créditos das fotos: Ingra Costa e Silva
Conheça também site do CMP Sindicato: http://cmpsindicato.com.br/

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