Achei que passaria a vida toda
com medo de lobo mau e
estaria a salvo na cidade.
Mas será?
Mesmo que você não se importe com as mortes em Suzano-SP, mesmo que não procure uma criança desaparecida na família, haverá um amigo, um vizinho, um colega, vítimas de algum tipo de violência.
Fecham-se as casas ao lusco-fusco, até à luz do sol o medo anda grudado em nossa pele como um beijo indesejado. Teme-se sair à noite, atender à porta, olhar pela janela. Teme-se pelos filhos na escola, pelos pais que foram à casa de amigos, pela avó que foi à missa.
Meu pai nos contava histórias assustadoras. Tínhamos pesadelos por culpa delas, mas nos encantavam.
Meu irmão tinha pavor de alma penada. Minha irmã temia bruxas; eu, o lobo mau. Boca com um exército de dentes afiados. Mas eu já sabia, no fim da estória, os bons venciam.
Essa era a pedagogia de papai para reunir a família em casa ao anoitecer, para que seus filhos não se embrenhassem nos matos com jararacas, para que não corrêssemos riscos de afogamento nos rios.
Todos ao redor da mesa, o ouvíamos de olhos arregalados. Nós com o medo estufando as pupilas, ele tranquilo com todos os filhos ao alcance dos olhos. Os medos da vida pareciam ser apenas os de bruxas, lobo mau, mula-sem-cabeça, alma penada, lobisomem.
Eu pensava, quando pai, como defenderei meus filhos? Cresci, livrei-me dos medos. Esses medos.
As aglomerações humanas acabaram com os matos. A urbanização matou o lobo mau. As bruxas ficaram boas, viraram símbolos positivos e amuletos nas casas. Entre o concreto, quase todos os bichos foram extintos; há raros lenhadores; nossas vovós moram em apartamentos com porteiro vinte e quatro horas.
Conta-me um aluno, foi assaltado três vezes voltando das aulas. Comprou um spray paralisante, um aparelho de choque e um tubo de gás lacrimogêneo para proteger-se. Meus amigos têm revólveres em casa e nos automóveis. Lojas e edifícios são fortalezas com câmeras, alarmes, grades e cercas elétricas. Seria o lobo mau?
Os pais de hoje não contam mais lendas às crianças. Jovens e adultos não têm mais medo de bicho. Vovós comem de telentrega. TV, jornal, rádios e as ruas nos mostram histórias reais de violência.
Crianças são raptadas por humanos; jovens são feridos e roubados por outros jovens; vovôs e vovós são amordaçados, assaltados, quando não violentados e mortos. Achei que passaria a vida toda com medo de lobo mau e estaria a salvo na cidade. Nenhum lobo se sustenta nessas poucas árvores sobreviventes nas praças. Estava certo, em parte.
Quem tem medo de lobo mau? Ninguém. Teme-se apenas o homem. Ninguém conhece o lobo mau a não ser em raros disfarces de carnaval, ou em inocentes fantasias de alcova entre os amantes.
Na realidade, os lobos deixaram a imaginação e, criados pelo meio, assustam entre o concreto, não apenas as crianças, mas, principalmente, os adultos cuja vida é frágil como seu patrimônio.
Mas não é matando o lobo e abrindo sua barriga que a sociedade dará à história um final feliz. Tampouco será encarcerando-o como um bicho a mais entre os tantos roubados da selva. Melhor seria encher-lhe o estômago quando ainda filhote, dar-lhe um lar amoroso como aos nossos filhos, fazê-lo sentir-se humano. Experiências bem sucedidas demonstram que viver com afeto, arte, boas escolas, literatura, humaniza-se muito mais do que usando castigos ou presídios.
Quem foi amado não devorará, quem foi acariciado não violentará, não será uma fera quem sentiu-se humano. Como meu pai, também quero ter meus filhos sob os olhos, mas gostaria de contar a eles uma história sem violência, nem do lobo, nem do lenhador.