A humanidade não está livre do fascismo/nazismo e de toda e qualquer violência cometida contra a vida, a integridade e a liberdade humanas não porque são forças que transcendem nossas escolhas e nossa habilidade para freá-las, mesmo que envolvam sofrimento e injustiças, mas porque somos capazes de nos somar com relativa naturalidade aos indivíduos e situações comprometidos com a desumanidade.
O conceito de banalidade do mal foi introduzido, na história do pensamento (político/moral), pela filósofa Hannah Arendt, a partir da sua obra Eichmann em Jerusalém (1963). Enquanto muitos esperavam que a pensadora, após acompanhar o julgamento de Eichmann, o descrevesse como um monstro, alguém persuadido por forças malignas, é apresentado como uma espécie de servidor que seguia ordens. Um funcionário que realiza o que a ele cabia, na sua falta, segundo seu entendimento, outros fariam o mesmo. Tratava-se, portanto, de um indivíduo desprovido de pensamento, de criticidade e de amparo ético.
A força do conceito de banalidade do mal nos remete a uma dura e inegável condição: o ser humano, dadas certas circunstâncias e, principalmente, na ausência e ou recusa da sua capacidade/habilidade de pensar, é capaz de cometer as maiores atrocidades.
A manifestação do ato de pensar, nos dirá a filósofa, não é, em um primeiro plano, o conhecimento, mas a habilidade de distinguir o bem do mal. É a capacidade de pensar que permite que o ser humano possa fazer juízos morais e não recusar a própria humanidade.
Claro que podemos reconhecer o empenho dos afetos políticos que acompanham e atravessam os desdobramentos históricos nos quais os indivíduos pautam suas existências, mas, no caso do pensamento em questão, o ponto é o colapso moral e a mediocridade humana que se seguem da inabilidade ou recusa de se pensar, inclusive, do colocar-se em jogo, inscrevendo o processo autoformativo no diálogo ético e estético consigo mesmo.
Outro ponto que merece destaque, a meu ver, é a tênue relação (ou diz respeito ao âmbito) entre resistência e cooperação.
Já temos experiências suficientes para saber que nem sempre encontramos, em determinados contextos, condições de resistir, até que novos elementos engendrem possibilidades reais de se enfrentar a força da violência e a catástrofe fascista. Contudo, a dificuldade de se construir instrumentos de resistência quando da explicitação ardida da barbárie, não deve ladrilhar o caminho para se justificar posturas que pactuam (também silenciosamente) com o que pode parecer inevitável. Quantos de nós já não consideramos natural seguir, mesmo sabendo que muitos não estarão conosco.
Todos os dias continuamos vivendo nossas vidas, talvez muitos incomodados com a situação em que a humanidade está enfiada, mas quantos são capazes de resistir e enfrentar a mediocridade cotidiana, a atrofia moral e o embestamento ético e estético?
Freud tematizou o narcisismo das pequenas diferenças, ou seja, sempre temos e ou consideramos (julgamos) outras pessoas inferiores a nós, pessoas que podemos pisar, maltratar. Somos subservientes aos “fortes” e “superiores” e desejamos submeter quem julgamos inferiores.
A humanidade não está livre do fascismo/nazismo e de toda e qualquer violência cometida contra a vida, a integridade e a liberdade humanas não porque são forças que transcendem nossas escolhas e nossa habilidade para freá-las, mesmo que envolvam sofrimento e injustiças, mas porque somos capazes de nos somar com relativa naturalidade aos indivíduos e situações comprometidos com a desumanidade.
Autora: Marli Silveira
Filósofa, Poeta e Acadêmica da Academia Rio-Grandense de Letras, autora da crônica: “Se perdermos, sequer os mortos estarão a salvo”: https://www.neipies.com/se-perdermos-sequer-os-mortos-estarao-a-salvo/
Edição. A.R.