Desacreditando a voz maniqueísta que havia dentro dele, Aquiles consegue permitir que Príamo volte em segurança à Tróia com os restos do filho. Aquiles se humaniza.
Em nosso cérebro de homo sapiens, há uma voz maniqueísta que nos faz perceber erroneamente os fatos na base da divisão entre os absolutamente bons e os absolutamente maus. Especialmente em uma guerra como na atual absurda invasão do exército de Putin na Ucrânia. Só com esforço, com conhecimento, com empatia vamos entender que há bondade nos que consideramos maus e há maldade nos que consideramos bons.
Por isso, admiramos tanto o diálogo descrito por Homero entre Príamo e Aquiles. Mesmo em meio a uma guerra, houve um inesquecível sublime momento não maniqueísta.
A foto de Daniel Garros (acima) pode ser vista com uma representação dessa benfazeja atitude: árvores em lados opostos se encontram mediadas pela luz no céu.
Aquiles há pouco matara Heitor. Era a guerra de Tróia. Príamo, pai de Heitor, conseguira a façanha de passar em meio a tropas inimigas sem ser reconhecido e alcançar a tenda de Aquiles. Busca o corpo do seu filho Heitor para poder processar as necessárias honras fúnebres e para colocar na boca do morto a moeda destinada ao pagamento de Caronte, o barqueiro do rio Aqueronte que divide o mundo dos vivos do mundo dos mortos. Caso contrário, sua alma sofrerá eternamente por nunca chegar a seu destino.
Implora ao matador do seu filho: “Aquiles, por Peleu, teu bom pai, tenha pena deste velho. Mais infeliz do que Peleu estou fazendo o que ninguém fez: beijo a mão do assassino de meu filho”.
A cena se passa à noite nos aposentos de Aquiles. O herói grego vê Príamo de joelhos ao lado do cadáver do próprio filho a chorar. Aquiles também é tomado por lágrimas e chora. Chora por ter sido induzido a lembrar dos sofrimentos de Peleu, seu pai. Chora por estar de luto pela perda recente de Patroclo, seu melhor amigo. E, identificado no sofrimento com aquele inimigo de joelhos a sua frente, cede.
Aquiles recorda dos jarros de Zeus: um cheio de maldades, outro de bondades. Somos banhados pela mistura de ambos. O herói grego que matara Heitor e, a princípio, se negara a entregar o corpo, percebe a realidade: havia maldade e havia bondade em gregos e em troianos.
Desacreditando a voz maniqueísta que havia dentro dele, Aquiles consegue permitir que Príamo volte em segurança à Tróia com os restos do filho.
Aquiles se humaniza.
Nós, com exemplos assim, também.
André Petry, editor especial da Revista Veja: “Nestes tempos saturados de um maniqueísmo brutal, o livro de Salton é uma lufada de ar puro. Com exemplos extraídos de pequenos dramas do cotidiano ou de grandes catástrofes históricas, o autor demonstra exaustivamente que somos todos banhados pelos dois jarros de Zeus. E não deixa dúvidas de que a vida seria tão mais plena se todos entendêssemos isso”.
Autor: Jorge Alberto Salton