Pedagogia da Autonomia certamente é um dos livros mais lidos e conhecidos de Paulo Freire (2015), intelectual reconhecido no Brasil e no exterior. É nesse livro que o autor manifesta sua fé no processo educativo e justifica porque a educação requer formação docente permanente para que se assegure uma educação para a autonomia dos estudantes.
Em seu escrito Freire ressalta que ensinar exige um conjunto de requisitos: rigorosidade metódica, pesquisa, respeito aos saberes dos educandos, criticidade, estética e ética, corporeificação das palavras pelo exemplo, aceitação do novo e rejeição de qualquer forma de discriminação, reflexão crítica sobre a prática, reconhecimento e assunção da identidade cultural.
O tensionamento entre autonomia discente e autoridade docente e a possibilidade de uma relação salutar entre ambas no cotidiano escolar, situa-se nas assertivas freireanas de que “não há docência sem discência” e de que “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar a possibilidade para a sua produção ou a sua construção” (FREIRE, 2015, p. 24).
De fato, ensinar, do ponto de vista gramatical, é um verbo transitivo que exige complemento, pois quem ensina, ensina alguma coisa (objeto direto) a alguém (objeto indireto); do ponto de vista democrático, toda ação constitui-se numa ação de alguma coisa em vista de alguém; do ponto de vista da radicalidade metafísica, na qual se apresenta a perspectiva freireana, os homens e as mulheres são seres históricos e inacabados.
Assim, diz Freire (2015, p. 25-26), “ensinar inexiste sem aprender e vice-versa e foi aprendendo socialmente que, historicamente, mulheres e homens descobriram que era possível ensinar”, assim como, era necessário “trabalhar maneiras, caminhos, métodos de ensinar” uma vez que “ensinar se diluía na experiência realmente fundante de aprender”. Assim, se faz necessário pensar de forma dialética o ato de ensino e de aprender.
No entanto, a implicação visceral entre ensinar e aprender não é um processo mecânico, instrumental, automático; não se apresenta como uma tecnologia gerencial de causa e efeito. Quando vivenciamos a autenticidade do ensinar-aprender, nas palavras poéticas de Freire (2015, p. 26) “participamos de uma experiência total, diretiva, política, ideológica, gnosiológica, pedagógica, estética e ética, em que a boniteza deve achar-se de mãos dadas com a decência e a seriedade”. É esta boniteza de experiência que produz a “curiosidade epistemológica” (FREIRE, 1995), a capacidade crítica de recusar a “educação bancária” (FREIRE, 2005) e a “pedagogia da indignação” (FREIRE, 2000).
Por isso se faz necessário uma pedagogia da autonomia que, mesmo numa prática “bancária” que possa continuar acontecendo em boa parte do tempo nos espaços escolares, o educando mantenha vivo o gosto da rebeldia, a curiosidade insatisfeita, o desejo de superar os condicionantes, a vontade de constituir-se um sujeito autônomo.
Mas como constituir uma pedagogia da autonomia?
O próprio Freire (2015) apresenta um conjunto de “exigências” sem as quais não é possível constituir uma prática educativa que produza processos de autonomia, as quais diferenciam um “educador bancário” e um “educador problematizador” nesta relação entre ensinar e aprender. A primeira delas é a “rigorosidade metódica” (FREIRE, 2015, p. 28) e não se trata de uma rigorosidade transmissível, “bancária”, formal, memorizadora, mas sim uma rigorosidade criadora, investigadora, inquietante, persistente, pensante, problematizadora. Nesta perspectiva, o educador problematizador não é o intelectual que “repete o lido com precisão” ou que “fala bonito em dialética mas pensa mecanisticamente”, ou ainda de alguém que se acha “cheio de si” e não tem a sensibilidade pedagógica de acolher as dificuldades dos educandos (FREIRE, 2015, p. 29).
O educador problematizador é aquele que ajuda “pensar certo”, tendo dúvidas das próprias certezas, pois deixa transparecer para seus educandos que “uma das bonitezas de nossa maneira de estar no mundo e com o mundo, como seres históricos, é a capacidade de, intervindo no mundo, conhecer o mundo” (FREIRE, 2015, p. 30).
“Pesquisa” e “respeito aos saberes dos educandos” são as outras duas exigências (FREIRE, 2015), sendo que a pesquisa é indicada como uma espécie de alimento intelectual para o professor que almeja se colocar na perspectiva da pedagogia da autonomia. Nas palavras do próprio Freire (2015, p. 31), “pesquiso para constatar, constatando, intervenho, intervindo educo e me educo”. Mais uma vez o movimento dialético que se efetiva no processo em que “pesquiso para conhecer o que não conheço e comunicar ou anunciar a novidade” (FREIRE, 2015, p. 31).
É na dimensão do professor que se coloca como sujeito pesquisador que se dá o deslocamento da “curiosidade ingênua” para a “curiosidade epistemológica” e é nesta dimensão que a pedagogia da autonomia requer “o respeito aos saberes dos educandos” (FREIRE, 2015, p. 33). Não se trata de acolher acriticamente os saberes socialmente construídos naquilo que chamamos de absorver o “senso comum, mas sim problematizar e discutir com os próprios alunos a razão de existir destes saberes e como muitos deles possui conexões com o ensino de certos conteúdos específicos trabalhados na escola.
Trata-se pedagogicamente de aproveitar as experiências que os alunos construíram em seus próprios contextos e submetê-las a um processo de problematização, confrontação e indagação de suas próprias realidades. Indagar, por exemplo, por que algumas áreas da cidade são descuidadas pelo poder público, enquanto os bairros ricos recebem toda a atenção? Por que certos problemas de saneamento básico não são resolvidos? Que implicações políticas, ideológicas, culturais e científicas se apresentam diante de situações de descaso de certos problemas que envolvem principalmente os bairros mais pobres? Todas estas indagações problematizadas são estratégias poderosas que deslocam o trabalho pedagógico do conteúdo pelo conteúdo para um processo em que este está encarnado na vida, nas condições da existência, no tecido social dos educandos.
O movimento que vai da “curiosidade ingênua” para a “curiosidade epistêmica” não constitui para Freire (2015, p. 33) “uma ruptura, mas uma superação”, ou seja, um movimento que dá pela capacidade crítica de escrutinar as próprias experiências e vivências. No entanto, a capacidade crítica, por sua vez, não ocorre de maneira espontânea ou mecânica, mas exige apropriar-se de referenciais conceituais, compreensões teóricas, processos metodológicos consistentes que possam ultrapassar a experiência imediata.
Para usar uma expressão de Bachelard (1996, p. 17), trata-se de identificar os “obstáculos epistemológicos” que dificultam “a formação do espírito científico”. Neste aspecto é importante ressaltar que não se identifica os obstáculos epistemológicos sem problematizar sobre qual é o lugar que a teoria ocupa na pequisa sobre a formação de professores (FÁVERO; TONIETO, 2016)
“Decência e boniteza de mãos dadas” é a expressão poética de Freire (2015, p. 34) para caracterizar a exigência estética e ética na constituição de uma pedagogia da autonomia. Tal exigência está associada à firme posição da “corporeificação das palavras pelo exemplo”, ou seja, não é possível educar para a autonomia e para a emancipação baseado na fórmula farisaica “faço o que mando e não o que eu faço”, pois “pensar certo é fazer certo”.
Não promove e constrói pedagogia da autonomia o professor que em determinadas situações ensina proposições progressistas e críticas sobre uma determinada realidade, mas em sua vida cotidiana, como integrante da sociedade, posiciona-se em defesa de uma concepção fatalista e fundamentalista.
A coerência do discurso com a prática, torna-se aqui, um elemento fundante e imprescindível para a constituição de uma pedagogia da autonomia. No dizer do próprio Freire (2015, p. 38), “não há pensar certo fora de uma prática testemunhal” e, é nesse sentido, que se pode compreender a noção de que todo ato educativo se torna um ato político, pois se materializa na formação de cidadãos conscientes, críticos e comprometidos com um projeto de sociedade.
Por fim, cabe registrar seguindo a argumentação de Freire (2015, p. 36) que a pedagogia da autonomia exige “risco, aceitação do novo e rejeição a qualquer forma de discriminação”, “reflexividade crítica”, bem como “reconhecimento e a assunção da identidade cultural”.
Toda novidade e mudança implica riscos, incertezas, possibilidades e desconforto, porém, nem toda novidade e mudança significa, necessariamente, melhoria e progresso. Novidade e mudança também podem significar retrocessos, ilusões e interrupções, seja no plano político ou educacional, conforme inúmeros relatos históricos.
A novidade e a mudança se tornam formativas e possibilitam uma pedagogia da autonomia quando são mediadas por uma reflexividade crítica capaz de identificar discriminações, práticas preconceituosas, situações de dominação e dependência. Em outras palavras, são formativas a novidade e a mudança que envolvem a participação democrática dos envolvidos no processo de comunicar e compreender o que está em curso no processo educativo. “A tarefa coerente do educador que pensa certo”, ressalta Freire (2015, p. 42), “é, exercendo como ser humano a irrecusável prática de inteligir, desafiar o educando com quem se comunica e a quem comunicar, produzir sua compreensão do que vem sendo comunicado”, possibilitando dessa forma que a inteligibilidade “se funde na dialogicidade”.
A “dialogicidade”, por sua vez, é entendida por Freire (2015, p. 43) como sendo “uma prática docente crítica, implicante do pensar certo” que não se dá de forma espontânea ou mecânica, mas que “envolve o movimento dinâmico, dialético, entre o fazer o pensar sobre o fazer”. Trata-se, portanto, de uma renúncia do “saber ingênuo” ou da “prática espontânea” frequentemente invocada quando professores apelam para um certo basismo pedagógico que frequentemente povoa o cotidiano escolar.
A “dialogicidade” exige “a rigorosidade metódica que caracteriza a curiosidade epistemológica do sujeito”. É por isso que não se consolidam processos formativos constituidores da pedagogia da autonomia, sem o permanente e incansável processo de “reflexão crítica sobre a prática”.
Referências:
BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico: contribuições para uma psicanálise do conhecimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
FÁVERO, Altair Alberto; TONIETO, Carina. O lugar da teoria na pesquisa sobre docência na educação superior. In: FÁVERO, Altair Alberto; TONIETO, Carina (orgs.). Epistemologias da docência Universitária. Curitiba: CRV, 2016. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/358740253_Epistemologias_da_docencia_universitaria
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 52 ed. São Paulo: Paz & Terra, 2015.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Unesp, 2000.
FREIRE, Paulo. À sombra desta mangueira. São Paulo: Olho d’água, 1995.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 42 ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2005.
Autor: Altair Fávero. Professor e Pesquisador do Mestrado e Doutorado do PPGEDU/UPF. Também publicou no site “A educação não pode ser reduzida a treinamento”: https://www.neipies.com/educacao-nao-pode-ser-reduzida-a-treinamento/
Edição: A. R.