A criança que sente fome não consegue aprender

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Muitas vezes, as crianças precisam daquela comida que a escola lhes oferece. Os estudos ficam em segundo plano. A fome não nos deixa pensar em outra coisa senão em comida.

O Brasil tem 33 milhões de pessoas no mapa da fome no dia de hoje e só crescem os números. Dessas pessoas, milhões são crianças que não têm o que comer ou comem mal. Muitas delas vêem na escola uma forma de receber alimento e é lá onde conseguem encher a barriga para sobreviverem.

Mas, sei que apenas uma refeição para cada criança na escola ainda é pouco, pois no início da aula ela não conseguirá absorver quase nada com a sua barriga vazia, e só depois de se alimentar se sentirá pronta para o ensino-aprendizagem, no entanto quando chega a hora de ir para casa creio que deveria ser servida outra alimentação para que esta criança pudesse chegar em casa alimentada e com disposição para fazer as suas tarefas de casa, brincar e se divertir como faz toda criança e é direito seu.

Eu já senti fome. E sei do que falo. Na minha infância senti vontade de comer e não tinha nada em casa. Nada mesmo. Quando falo de fome não é teoria, mas a experiência de quem teve que ir às ruas à procura de comida como qualquer criança pobre brasileira. E foi uma experiência tão marcante e dolorosa que hoje tenho medo de ficar sem comida na minha geladeira.

A dor da fome vai matando aos poucos.

A barriga vazia, a dor de cabeça e a fraqueza no corpo. Senti fome não porque moro no Nordeste e devido a falta de água. Senti fome porque tive um pai irresponsável que largou quatro filhos com uma mulher doente e que não podia mais trabalhar para dar de comida às suas crianças. Se procurarmos famílias assim pelo nosso país encontraremos aos montes.

Há crianças com mães solos, crianças com pais alcóolicas, crianças que vivem sozinhas pelas ruas e nunca experimentaram um bolo de chocolate ou um sanduíche. Catam comida nas latas de lixo dos restaurantes e das padarias. Pedem comida às pessoas de casa em casa. E o que é pior trabalham para comprarem um pão para comerem ou pregam os rostos nas vitrines das docerias para sentirem o cheiro que vem lá de dentro como se esse cheiro pudesse matar as suas fomes.

Quando senti fome tive que trabalhar como faz a maioria das crianças brasileiras. Não larguei a escola porque lá eu tinha a merenda garantida. Vi a minha mãe chorar ao colocar os pratos na mesa com uma sopa feita de água e cheiro verde pra gente comer num fogão à lenha porque sequer o carvão ela podia comprar.

A fome é o pior mal que pode acontecer a uma criança. Ela não sabe dizer o que sente, ela não quer brincar, ela se sente fraca e sem forças para andar pelas ruas. As suas costelas vão aparecendo aos poucos, começa a desnutrir-se e acaba morrendo de fome. É triste ver alguém morrer de fome, porém é o que estamos vendo acontecer no nosso país todos os dias.

Os ricos cada vez mais ricos, o ódio aumenta cada vez mais, as desigualdades sociais, o medo, a inocência, a estupidez e a opressão aos negros tudo isso tem desencadeado um processo de transformação na cultura e qualidade de vida dos brasileiros que moram em periferias. O desemprego, a criminalidade, a violência, a ignorância têm levado às pessoas para o fundo do poço, para procurarem ossos nos carros de lixo ou nas caçambas de ferro onde alguns açougues costumam jogar os seus restos.

Parece que não estamos mais preocupados com a vida dos nossos irmãos pobres. Pensamos somente em nós. Talvez por estarmos vivendo uma situação parecida com a inflação cada vez maior e o aumento dos preços da cesta básica todos os dias, o corte de alguns alimentos que antes tínhamos nas nossas mesas e agora não podemos mais comprar. Os alimentos mais básicos têm aumentado bastante nos últimos tempos.

Eu me lembro bem que até seis meses passados comprava um pão por dez centavos, hoje um pão na minha cidade custa cinquenta centavos. O preço do tomate, da cenoura, do feijão e da carne subiram muito nos últimos tempos. E quando podemos comprar algum desses alimentos nos falta o dinheiro do gás de cozinha.

A criança que sente fome não dorme direito, tem pesadelos, faz xixi na cama e não consegue aprender como deveria.

Ela tem os olhos fundos e a cabeça é desproporcional ao seu corpo. Tem delas que com três ou quatro anos de idade nunca viu um prato de feijão, não sabe o que é um pedaço de bife de carne. É doloroso. É revoltante. Isso não deveria ser mais permitido acontecer.

Eu sofri na minha infância com a fome. Eu chorei com a fome. Devia existir uma lei internacional para que nenhuma criança sentisse fome em nenhum lugar do mundo porque é muito sofrimento. Como não sabemos direito ainda o que é a morte a gente fica esperando que caia do céu algo para comermos. Que apareça alguém que nos dê uma fruta ou um pedaço de pão para nos alimentarmos. A gente não deseja nada porque não temos forças para desejar. Ficamos quietos ali sentados no chão à espera de que algo nos aconteça sem saber o que exatamente.

Nove crianças morrem a cada minuto devido à falta de nutrientes essenciais em suas dietas.

O cenário continuará o mesmo a menos que a ajuda alimentar chegue a quem precisa. Quando crianças sofrem de desnutrição grave, seus sistemas imunológicos ficam tão debilitados que se amplia imensamente o risco de morte. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), a desnutrição é a maior ameaça ao sistema de saúde público mundial, com 178 milhões de crianças desnutridas no mundo.

Morrem milhões de crianças desnutridas no mundo e essa desnutrição ocorre por falta de alimentos básicos ao pequeno corpo. Na minha casa a gente tinha uma geladeira com garrafas de água dentro, mas quando a mamãe não pôde mais pagar a conta de luz a gente ficou somente com a geladeira para olharmos para dentro dela na esperança de que um dia ela estaria cheia de novo.

Sempre fui defensora de três merendas escolares.

Uma na entrada outra na metade da aula e uma última no fim da aula porque sei que tem criança que vai à escola somente comer. Ela precisa daquela comida que a escola oferece. Os estudos ficam em segundo plano. A fome não nos deixa pensar em outra coisa senão em comida. Eu mantinha meus olhos fechados quando sentia o cheiro da comida que vinha da casa da vizinha e se senti alegria um dia nesta vida foi quando mamãe ganhou um caldeirão de feijão preto para que comêssemos no almoço. Os meus irmãos neste dia pegaram caranguejos no mangue que tem perto da minha casa até hoje e venderam alguns na feira. Com o dinheiro mamãe comprou feijão e arroz e podemos depois de dez meses ter uma refeição sadia.

A minha história com a fome foi de lutas e de vontade de que o tempo da infância passasse rapidamente para eu poder crescer e ajudar a minha mãe e os meus irmãos financeiramente. Com onze anos comecei a trabalhar vendendo vestidos de bonecas para as minhas amigas. O que ganhava trazia para casa. Era pouco, mas já dava para ajudar a comprar o pão. Uma vizinha amiga e pessoa de bom coração nos cedeu água potável para tomarmos banho, fazer a comida e bebermos.

Eu tinha um cajueiro no quintal da minha casa que era quem matava a minha fome. Eu chupava os seus cajus, mamãe fazia sopa de caju para a gente e comíamos ele cozido. Era uma delícia as várias receitas que mamãe inventava. Foi o meu cajueiro que matou a minha fome na infância. A gente também criava bichinhos que foram todos sendo mortos para que pudéssemos comer. Quando acabou tudo e já não tínhamos mais nada para comermos começamos a chorar de fome e deixamos mamãe desesperada.

A miséria caminha lado a lado com a fome no Brasil.

Uma em cada três crianças está com anemia no Brasil neste momento. Muitas mães para salvarem os seus filhos da fome infelizmente as deixam sob a guarda de outras pessoas, dos companheiros dos quais estão separados faz algum tempo, dos avós ou dos familiares que possam dar um prato de comida para eles. Algumas crianças são largadas nas ruas e sobrevivem sob os cuidados de outras pessoas em situação de rua que têm amor por elas e não as deixam sentirem tanta fome.

Em 2014 o Brasil era apontado pelas Nações Unidas como um país exemplar para os demais e ficamos fora do mapa da fome.  O tempo passou, as coisas mudaram e hoje os governantes não conseguem mudar o cenário político-econômico-financeiro que se estabeleceu no país. A inflação está alta, os empregos formais deixaram de existir, o preço da cesta básica cresceu assustadoramente e o salário-mínimo não acompanha as necessidades básicas da vida de um pai de família.

Mesmo com os auxílios oferecidos pelo governo federal, depois da pandemia do Coronavírus, ainda assim a fome só tem aumentado no nosso país. O problema está cada vez mais complicado.

É triste ver uma mãe entregar os seus filhos a desconhecidos para que eles não morram de fome.

O mais triste é vermos crianças desesperadas, com as mãos para cima ou estendidas pedindo um pedaço de pão ou um prato de feijão nas grandes cidades brasileiras. Tivemos uma redução de crianças que mendigavam de porta em porta em anos anteriores, mas já é possível vê-las novamente pedindo comida e carregando sacos nas costas pelas ruas das cidades onde as pessoas ainda abrem as portas das suas casas para atenderem um chamado ou um bater de palmas.

Não estou criticando aqui ninguém, mas alguém é responsável por toda essa fome e desigualdade social que vem ocorrendo no Brasil. Alguém que pode fazer alguma coisa por essas crianças e pelas famílias pobres moradoras de periferias deve descer do palanque das eleições e salvá-las antes que a fome as mate covardemente. É preciso logo que façamos alguma coisa ou teremos uma nova pandemia no país dessa vez de fome generalizada porque até as pessoas de classe média estão cortando os seus orçamentos imagine as que vivem de empregos informais e mal ganham para se alimentarem.

Atualmente, a cesta básica consome 65% do salário-mínimo, conforme o Dieese. Porém, 18,8 milhões de crianças com menos de 14 anos vivem em lares com renda per capita inferior a meio salário-mínimo, mostra a PNAD de 2019, e isso tem crescido muito nos últimos 03 anos. São dados que podem ser considerados desatualizados, é só para termos uma ideia da gravidade do problema.

Como se diz a frase “quem tem fome tem pressa”.

Não deixemos para dar um pão a uma criança amanhã se podemos ajudá-la a matar a sua fome hoje. Amanhã talvez seja tarde demais. Não deixemos de ajudar as crianças do nosso país preocupadas com crianças de outros continentes mais pobres, porque a fome é uma só. Ajudemos a quem pudermos. Do jeito que pudermos. A fome mata. A fome é uma coisa triste.

Creio que o poema de Manuel Bandeira nunca foi tão necessário à nossa leitura o quanto os dias de hoje onde ele nos diz

“Vi ontem um bicho / Na imundície do pátio / Catando comida entre os detritos. / Quando achava alguma coisa, / Não examinava nem cheirava: / Engolia com voracidade. / O bicho não era um cão, / Não era um gato, / Não era um rato. / O bicho, meu Deus, era um homem.”

E para que não vejamos mais nenhum homem catando comida em latas de lixo ou caçambas de caminhões à procura de ossos façamos a nossa parte doando um pouco do que temos para quem sente fome. Porque o homem com fome pode se transformar num bicho selvagem à procura de comida e atacar outro bicho homem atrás de comida.

Autora: Rosângela Trajano

Edição: Alexsandro Rosset

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