Crise da cultura ou crise civilizacional? Crise do espírito e do modo de vida ocidental ou crise da Humanidade? Crise da ideia da liberdade ou crise da prática da virtude?
Talvez um dos sentimentos mais compartilhados e evidentes do recente cenário de pandemia é o de crise. De todos os lados escutamos, percebemos, respiramos, somos absorvidos por sua presença: crise de governo, crise institucional, crise econômica, crise do desemprego, crise humanitária, crise existencial, crise da razão, crise da ciência, crise sanitária … e a lista poderia ser imensa ou até infinita.
No início de 2020, o planeta inteiro foi sacudido por um gigantesco avalanche chamado COVID-19 que alterou e continua alterando a vida de todos nós, das instituições que fazemos parte e da forma como se dão as relações humanas. Possivelmente, estejamos vivendo uma das maiores crises do século XXI.
Crise da cultura ou crise civilizacional? Crise do espírito e do modo de vida ocidental ou crise da Humanidade? Crise da ideia da liberdade ou crise da prática da virtude? Crise da vida pautada pela ética ou crise da prática de uma forma de fazer política que está nos destruindo?
Crise do consumismo ou crise de identidade? Crise do vazio existencial que se agiganta quando nos isolamos ou crise sanitária que ameaça a sobrevivência da espécie? Crise da banalização da morte ou crise de um sistema ultraliberal que transformou tudo em dinheiro?
As perguntas são muitas e complexas. As respostas, parciais e pouco convincentes.
Como diz Adauto Novaes na coletânea A crise da razão, a crise exige de nós reflexão, pensar não apenas sobre os acontecimentos históricos, mas também os fundamentos, os percursos, as escolhas, as opções, as crenças e os valores que orientam nossa vida. Ter a capacidade de refletir sobre a crise não é tarefa simples e pouco desejável pela grande maioria das pessoas.
A reflexão por si só nos coloca de volta a nossa própria condição primeira, de vermos o quanto somos limitados, frágeis, finitos, vazios e, por tudo isso, também responsáveis por aquilo que acontece, por aquilo que defendemos. Se vivemos o caos e se a realidade nos ameaça, inclusive de morte em tempos de pandemia, então é necessário dar-se conta que poderia ter sido diferente se tivéssemos feito outras escolhas, optado por outros projetos, deliberado de outra forma.
A palavra crise ou o que ela designa, geralmente é traduzida por algo negativo, ou “algo que não vai bem”. Quando uma determinada sociedade vive um alto índice de desemprego, queda no consumo, perda expressiva de renda da maioria das pessoas, economia em baixa, precarização das condições de trabalho e recessão geralmente se diz que estamos passando por uma crise econômica. Quando alguém se sente vazio, sem perspectiva de vida, sem projetos e sonhos, geralmente dizemos que este alguém vive uma crise existencial.
Quando um determinado governo tem dificuldade de articular um conjunto de políticas (econômicas, sociais, comerciais, internacionais), tem dificuldade de se relacionar com outros poderes, causa escândalos, está em permanente guerra com a imprensa ou com outros partidos políticos, está ameaçado de sofrer um processo de impeachment atribuímos a essa situação a ideia de crise política. E os exemplos poderiam ser extensivos a todas as outras crises.
No entanto, a palavra crise também pode significar oportunidade.
É o que nos diz com propriedade João-Francisco Duarte Junior em seu livro O sentido dos sentidos, quando lembra que na cultura chinesa “o conceito de crise é wei-ji, locução composta pela junção dos ideogramas perigo e oportunidade”. Compreendida dessa maneira, crise não é somente uma situação arriscada, delicada, ameaçadora, perigosa, causadora de medo, insegurança, vulnerabilidade, morte; a crise pode ser também uma oportunidade para repensarmos nosso rumo societário, nossas relações, nossos projetos de vida, nossa própria existência, nosso estar no mundo.
A crise se torna, dessa perspectiva, um sinal de alerta para revermos os rumos, as escolhas, os valores, as prioridades, o que realmente importa. Que a pandemia indesejada se seja uma grande oportunidade para fazermos uma profunda revisão de nossa trajetória civilizacional e talvez sermos mais prudentes e inteligentes nas nossas escolhas.
Autor: Dr. Altair Alberto Fávero