Um desafio educacional ainda permanece. A escola laica, pública, republicana, enquanto casa de formação das novas gerações, pode se tornar por excelência um tempo e espaço de emancipação dos falsos ídolos.
Idolatria é o culto que se presta aos ídolos. No sentido figurado, idolatria significa “amor excessivo”, “admiração exagerada”, que pode produzir ações desmesuradas, muitas vezes insanas, irracionais, fora de controle. O comportamento de alguém tomado pela idolatria é excessivo, alienado, ilusório.
Idolatrar é divinizar e imortalizar (tornar deus) algo ou alguém que é perecível, mortal, humano.
A idolatria sempre se fez presente na história humana. Nos tempos primitivos, fenômenos da natureza eram idolatrados como deuses. O medo dos fenômenos naturais assustadores eram aplacados com o culto as divindades. Com o tempo, pessoas passaram a ser idolatradas, pois representavam, muitas vezes de forma ilusória, uma suposta proteção dos perigos que rondam a vida humana. “Líderes autoritários”, no passado e no presente, usaram e usam da idolatria para pavimentar seu perverso caminho de ditaduras, maldades e opressão. E a história nos mostra as perversidades que produziram, causando miséria, perseguição e mortes.
A ciência moderna nasceu da luta contra a idolatria. O conhecimento científico, de certa forma, é uma explicação dos fenômenos naturais e sociais que promove a emancipação dos seres humanos dos grilhões da idolatria. Por isso que líderes autoritários odeio a ciência, a educação e o pensamento crítico. Na gênese da ciência moderna, Francis Bacon foi um combatente da idolatria.
Francis Bacon (1562-1626), é considerado juntamente com René Descartes, um dos iniciadores do pensamento moderno, tanto por sua defesa ao método experimental que revoluciona ou pela ciência que fez avançar o conhecimento científico, quanto pela sua rejeição ao pensamento religioso escolástico que impedia as pessoas de olharem para a natureza como algo que poderia ser dominado e utilizado a serviço da humanidade.
Embora não tenha sido cientista de formação, Bacon teve uma grande influência enquanto defensor do método científico que valorizava a experiência e a experimentação.
Bacon ocupou diversos cargos no governo britânico, chegando a ser chanceler (equivalente a ministro da Justiça) no reinado de Jaime I. Teve um grande prestígio intelectual em sua época e foi autor de obras importantes como Novum organon, o Progresso do saber e Nova Atlântida.
No plano filosófico, Bacon foi responsável por introduzir uma concepção interessante de pensamento crítico por meio de sua famosa teoria dos ídolos. Para ele, compreender a teoria dos ídolos possibilita os seres humanos formularem um método que seria capaz de evitar o erro e colocá-los no caminho do conhecimento correto.
Os ídolos são ilusões ou distorções que, segundo Bacon, bloqueiam a mente humana impedindo o verdadeiro conhecimento. Na sua formulação os ídolos podem ser classificados em quatro tipos: ídolos da tribo, da caverna, do foro e do teatro.
Os ídolos da tribo resultam da própria natureza humana, ou seja, o homem por natureza não tem nenhum privilégio no mundo em função de sua própria natureza e o “intelecto humano é semelhante a um espelho que reflete desigualmente os raios das coisas e, dessa forma, as distorce e corrompe. Por isso, temos dificuldade de conhecer as coisas como realmente são e temos uma propensão em criar fantasiosamente compreensões que não condizem com a realidade.
Os ídolos da caverna são consequências das características individuais de cada ser humano, da constituição física e mental que cada um sofreu de seu meio. Os ídolos do foro são resultado das relações entre os homens, da comunicação e do discurso, sendo que as palavras forçam o intelecto e o perturbam por completo. Por conta disso, as controvérsias ideológicas ou religiosas são decorrentes desta forma distorcida que impede as pessoas de verem como os coisas realmente são. Os ídolos do teatro, por sua vez, são derivadas das doutrinas filosóficas e científicas antigas ou novas, que “figuram mundos fictícios e teatrais”.
Bacon foi um defensor de que é necessário um novo método para a nova ciência que estava dando seus primeiros passos. Para que isso acontecesse, era necessário despir-se dos preconceitos, das ilusões, dos ídolos. Somente dessa forma seria possível conhecer a natureza, suas leis, seu funcionamento. “O homem”, diz Bacon, “ministro e intérprete da natureza, faz e entende quando constata, pela observação dos fatos ou pelo trabalho da mente, sobre a ordem da natureza”. Ele foi um pensador que acreditava no progresso, que é resultado do conhecimento que surge quando usamos um método adequado.
Mais de quatro séculos nos separam do tempo em que viveu Francis Bacon. Muitas transformações aconteceram e nos possibilitaram novas descobertas e novas formas de compreender o mundo da natureza e o próprio ser humano. No entanto, olhando os acontecimentos recentes parece que ainda não nos libertamos dos ídolos que ainda persistem na forma como lemos os fenômenos e interagimos socialmente.
Ainda estamos presos a preconceitos, ilusões, julgamentos precipitados. Falsos ídolos continuam sequestrando mentes e corações com a falsa promessa de afastar os perigos que rondam suas vidas. Talvez, por isso, ainda não conseguimos avançar mais na organização de uma vida social mais decente e propícia para o pleno desenvolvimento intelectual do ser humano.
Um desafio educacional ainda permanece. A escola laica, pública, republicana, enquanto casa de formação das novas gerações, pode se tornar por excelência um tempo e espaço de emancipação dos falsos ídolos.
Autor: Dr. Altair Alberto Fávero – altairfavero@gmail.com
Professor e Pesquisador do Mestrado e Doutorado do PPGEDU/UPF. Autor da crônica “Quando o homem se torna o lobo do próprio homem”: https://www.neipies.com/quando-o-homem-se-torna-lobo-do-proprio-homem/
Edição: A.R.
Excelente reflexão, tão necessária nós dias de hoje. A idolatria cega os humanos e freia o desenvolvimento do social, como um todo. Parabéns, professor, pela escrita desta publicação.