No princípio dos tempos havia harmonia, paz e felicidade. Tudo parecia concorrer para o bem viver de todos. Agora, porém, as coisas já não são assim. Saímos da antiguidade para a modernidade e depois para a pós-modernidade. Daí seguimos para a pós-verdade e a pós-humanidade, o que mudou quase todo projeto original. Passamos pela floresta, pela caverna e pelo asfalto; cruzamos os oceanos, sobrevoamos as nuvens, fomos à lua e agora decaímos. Parece mesmo que estamos em queda livre.
Adveio o sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman (1925 – 2017) e afirmou que o fim da modernidade foi brusco. Disse que a pós-modernidade iniciou no exato momento em que os acontecimentos que deveriam ficar dentro de quatro paredes foram publicizados em cadeia nacional.
O que era de foro íntimo foi se tornando sempre mais público e vulgarizado. E, em contrapartida, muitas coisas que deveriam ser coletivas e públicas foram mais e mais sendo privatizadas. Assim, emergiu o que alguns chamam de alta modernidade e, outros, simplesmente, pós-modernidade.
A entrada na fase da pós-verdade está relacionada às consequências mais desastrosas da pós-modernidade. Nesse contexto, a verdade sofreu abalos não só porque emergiram muitas incertezas e pluralidade de opiniões, mas principalmente porque a mentira passou a fazer mais sucesso. E, assim, as relações sociais e políticas foram se impregnando de fake news, meias verdades e meias mentiras. O terreno se mostrou propício para o retorno do estado de natureza (pré-social), em uma espécie de “guerra de todos contra todos”, como descreveu o filósofo Thomas Hobbes no livro Leviatã.
A perspectiva da pós-humanidade veio por acréscimo. Desde que se sentiu a necessidade, brotada do desejo, de dar vazão e fazer circular o ódio que estava camuflado ou controlado no recôndito da alma humana, inauguramos a fase nebulosa da pós-humanidade. Ela tem se aprofundado de forma célere nos últimos tempos. Alguns estão denominando esta fase doentia de epidemia do neonazismo. De certo modo, todos somos afetados por esta onda epidemiológica. Muitos se tornam transmissores em alto grau e alastram a doença. Dessa afetação resultam muitos desafetos e outros tantos indiferentes a qualquer sofrimento alheio.
Se é verdade que o ambiente tange, tinge e configura comportamentos e o caráter das pessoas, isso não é a verdade absoluta.
Richard Sennett, sociólogo e historiador norte-americano, autor do livro “A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo” (1998) oferece uma significativa reflexão sobre o contexto político e social do mundo pré e pós-globalizado. Segundo ele, embora haja aspectos positivos advindos com o chamado novo capitalismo, por outro lado são notáveis os fatores que contribuem para a corrosão do caráter humano, da integridade e da confiança mútua.
O ódio que dorme no coração humano não é novidade, como já indicava e advertia Jesus Cristo: “Uma nação lutará contra outra, um reino contra outro reino […]. E vocês serão entregues até mesmo pelos próprios pais, irmãos, parentes e amigos. E eles matarão alguns de vocês. Vocês serão odiados por todos, por causa do meu nome. Mas não perderão um só fio de cabelo. É permanecendo firmes que vocês irão ganhar a vida!” (Lc 21, 10;16 -19).
Por mais difícil que seja, é possível permanecer firmes no que de fato importa. É possível estabelecer limites e parâmetros subjetivos e objetivos aos avanços da barbárie e da decadência humana. É possível (ou haverá de ser) modificar, transformar e ressignificar as relações interpessoais e sociais.
É necessário continuamente produzir uma metamorfose civilizatória e humanitária baseada na busca da verdade, da ética, da democracia, da solidariedade, da convivência fraterna e da ajuda mútua. Oxalá consigamos dar esse salto de qualidade a tempo e garantir vida sustentável, saudável, fraterna, digna e feliz para todos e todas!
Autor: Dirceu Benincá