A escrita como exercício de amizade

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A escrita bem elaborada que constrói amizade requer um rigoroso processo de investigação, sistematização e elaboração que não se restringem ao simples domínio de técnicas artificiais de elaboração textual, mas se projeta na primorosa comunicação dialógica com a realidade e com a tradição.

Em seu polêmico escrito Regras para o parque humano, o filósofo alemão Peter Sloterdijk, lembrando o escritor Jean-Paul Sartre, explica que livros “são cartas redigidas a amigos, apenas mais longas”.

Com essa afirmação, Sloterdijk explicita precisamente a natureza e a função do que foi o humanismo na sociedade ocidental: “a comunicação propiciadora de amizade realizada à distância por meio da escrita”. Isso significa que quando tomamos contato com os livros e escritos em uma determinada área do saber, estamos efetivamente nos aproximando e apropriando das “cartas de amizade” que os antecessores nos enviaram para que agora pudéssemos ter acesso ao que eles descobriram e sistematizaram. “Faz parte das regras do jogo da cultura escrita que os remanescentes não possam antever seus reais destinatários”, expressa Sloterdijk, e continua: “não obstante, os autores lançam-se à aventura de pôr suas cartas à caminho de amigos não identificados”.

A leitura das longas cartas, por sua vez, depende da “boa vontade” e do interesse dos destinatários não-identificados que podem ou não se sentir atraídos em ler tais mensagens redigidas em outras circunstâncias e que agora poderão ajudar a discernir certos fatos e problemas que perturbam o contexto atual.

Por isso, Nietzsche tem razão quando diz que a escrita é o poder de transformar o amor ao próximo, ou ao que está mais próximo, no amor à vida desconhecida, distante, ainda vindoura. “A escrita não só estabelece uma ponte telecomunicativa entre amigos manifestos vivendo espacialmente distantes um do outro no momento do envio da correspondência”, afirma Sloterdijk, “mas também põe em marcha uma operação rumo ao que não está manifesto: ela lança uma sedução ao longe, com o objetivo de revelar ao amigo desconhecido enquanto tal e leva-lo a ingressar no círculo de amigos”.

As preciosas reflexões de Sloterdijk sobre essa íntima ligação entre escrita e amizade estão ligadas a tentativa de explicar as razões pelas quais o humanismo se instaurou e se solidificou na tradição ocidental. De forma análoga podemos dizer que essa relação se estabelece no momento em que tomamos a decisão de publicar um conjunto de ideias que nos são aprazíveis e desejamos compartilha-las com outros “amigos não identificados”.

Não sabemos ao certo quais serão os destinatários destes escritos. Não sabemos como tais escritos serão recebidos e interpretados, muito menos a repercussão que os mesmos poderão ter em outros meios diferentes dos quais estamos acostumados. No entanto, nossa intenção de fundo é compartilhar com um público mais amplo, com destinatários não-identificados, aquilo que, por um certo tempo, foi objeto de investigação restrita por quem tem paixão pelo pensamento filosófico.

O ato de escrever um texto é, antes de tudo, um longo processo de organização do pensamento, de intensa leitura, investigação, disciplina, método e determinação. Escrever é por no papel um pensamento próprio, auxiliado por diversos autores (“amigos” do passado ou presente) que contribuem com seu pensamento sistematizado em forma de escrita.

Conforme o dizer do filósofo alemão Arthur Shopenhauer, em seu livro A arte de escrever, “uma grande quantidade de conhecimentos, quando não foi elaborada por um pensamento próprio, tem muito menos valor do que uma quantidade bem mais limitada, que, no entanto, foi devidamente assimilada”. É por isso que a escrita bem elaborada que constrói amizade requer um rigoroso processo de investigação, sistematização e elaboração que não se restringem ao simples domínio de técnicas artificiais de elaboração textual, mas se projeta na primorosa comunicação dialógica com a realidade e com a tradição. Escrevemos porque almejamos compartilhar nossas ideias com amigos não identificados do presente e do futuro.

A escrita cuidadosa que constrói laços de amizade se opõe radicalmente as fakes, tão comuns em nossos dias.

Geralmente quem dissemina e compartilha fakes não está preocupado em construir relações de amizade, não quer compartilhar algo construtivo que promove o bem querer, o conhecimento, a verdade, a informação validada; ao contrário deseja construir a desavença, o ódio, a mentira, a falsidade, a destruição. Promove um conjunto de informações falsas, perversamente elaboradas para destilar o veneno do preconceito, do machismo, do racismo, da xenofobia e todas as formas de maldade que tanto mal fizeram a humanidade e continuam produzindo a violência e a destruição dos laços humanos.

A circulação de fakes nas redes sociais, as distintas formas de fanatismo (religioso, político, ideológico) e o negacionismo da ciência são atitudes de pessoas e de grupos perversos que adotaram a banalidade do mal como forma de vida e acreditam que suas convicções patológicas são mais importantes que vidas humanas. Nesse sentido, é importante dizer que a escrita de bons textos, a socialização de tais escritos pode se tornar um poderoso antídoto para neutralizar a banalidade do mal que tomou conta do cenário atual.

Escrevo também para me fazer nesse mundo. Pra marcar e reler minhas palavras na minha mente ou em qualquer papel e, mais uma vez, me ver. Me ver porque nem sempre fui vista como queria. E isso é algo incômodo ainda pra mim: tentar compreender esse espelho com que insistem em ver aqueles que não queremos que pareçam com a gente. (Helena Schimitz) Leia mais: https://www.neipies.com/escrever-para-que-em/

Autor: Altair Alberto Fávero

Edição: Alex Rosset

4 COMENTÁRIOS

  1. Ótimo texto! Texto, realmente, escrito para construir amizades e esclarecer a importância de entender um bom texto.

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