A fala das águas

1946

A beleza da natureza se entrega para o abraço da inteligência. Esta é a nossa permanência humana no planeta, que as falas das águas gritavam nesse caudal de outono.

Maio iniciou com chuvas, tempestades, alagamentos, inundações, desaparecimentos e mortes. Águas que inundam, invadem, afogam, matam as pessoas, os animais, as plantas de modo avassalador, como se a natureza enfurecida reagisse a tanto descaso e gritasse com todas as suas forças, para se fazer ouvir, mostrando a todos que chegou no seu limite.

Não são águas que lavam feridas, não são águas que cantam de alegria, são águas revoltas que anunciam um ponto final para a dor e o desprezo dos humanos com o planeta em que habitam. Não são violentas, foram violentadas pela ganância, pelo produtivismo, pela ausência de cuidado, por serem usadas de forma afrontosa, desrespeitadas em suas fronteiras naturais.

Lembramos aqui a famosa frase de Bertold Brecht:

“Todo mundo chama de violento a um rio turbulento,

 mas ninguém se lembra de chamar de violentas as margens que o aprisionam”.

Essa violência, que aprisiona, traduziu-se na civilização de várias formas, por diferentes procedimentos, nas diversidades inventivas, pelas quais os humanos decidiram moldar a natureza em suas manifestações. Esqueceram-se que sua soberania sobre o planeta era nenhuma. De modo irresponsável, com atitudes destruidoras, produziram esse cenário de horror.

Ao olharmos as cenas das pessoas sendo socorridas, surgidas dos telhados das casas, do meio dos rios, debaixo das pontes, junto às estradas, nas encostas dos morros, percebemos os limites da aventura humana, cuja temeridade produziu dores, perdas e lutos. Se tivesse sido utilizada a ousadia da inteligência teríamos alegrias, festas e celebração da vida.

Esse presente absoluto da tragédia, exterminador da história e da memória das pessoas, transformou a vida numa cena líquida, levada pelas águas, cujas falas anunciam um futuro mergulhado no absurdo do presente. Importante lembrarmos dos estudos de Zygmunt Bauman, e sua crítica acerca da Modernidade Líquida, em que tudo escorre como a água entre os dedos das mãos. As pessoas contemplavam desoladas as fotografias, os brinquedos, seus pertences como algo que escorria entre seus dedos, levados pela água.

Construímos esse tempo de modo imperativo como se fôssemos donos do Planeta que habitamos. Mais uma vez ocorreu o que Bauman prenunciou, o tempo também se tornou líquido.

Tempus fugit, diz o provérbio latino. O tempo foge. Não dominamos seu curso, nem sabemos o que virá. Sabemos que devemos cuidar da vida, com o zelo necessário para que vivamos nossos possíveis com relativa segurança, sem a corrida maluca para dominar tudo, o que resulta em ficar sem nada.

A paz do mundo que criamos na civilização, não pode ser a paz da ausência, do silêncio indiferente, do domínio perverso da natureza. Antes, deve ser a paz do afeto, da presença, do cuidado, da acolhida.

A beleza da natureza se entrega para o abraço da inteligência. Esta é a nossa permanência humana no planeta, que as falas das águas gritavam nesse caudal de outono.

Autora: Cecilia Pires, Maio/2024. Também escreveu e publicou no site “Direitos humanos: porque são imprescindíveis”: https://www.neipies.com/direitos-humanos-porque-sao-imprescindiveis/

Edição: A. R.

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