É ouro para o Brasil no solo da ginástica artística das Olimpíadas 2024 de Paris, mas não recebemos medalhas no respeito e na opressão às mulheres negras. Infelizmente, este ouro que tanto nos emocionou nesta manhã de cinco de agosto só nos leva a refletirmos sobre o papel da mulher preta na nossa sociedade.
Por que a mulher preta precisa todos os dias mostrar a sua coragem e enfrentar batalhas as mais diversas para alcançar os seus sonhos e objetivos? O que a faz diferente das outras mulheres? O que vimos hoje no pódio das Olimpíadas 2024 foi uma cena de causar choro e fortes emoções, pois não foi apenas Rebeca Andrade, brasileira, a se destacar, mas as outras atletas que subiram o mesmo pódio com ela também são negras e veem de um país que por muitos anos escravizou seus negros.
Tivemos no pódio olímpico a força da mulher negra que se veste todos os dias de coragem para enfrentar a opressão de alguns brancos que não têm empatia ou não sabem amar o próximo como podemos ver nos ensinamentos daquele que foi o maior homem a passar pela Terra, Jesus Cristo, que nos dizia amai ao próximo como a ti mesmo. Não! As mulheres pretas não são amadas pelo próximo! Isto é uma verdade!
Meninas negras de até 13 anos são estupradas a cada 08 minutos no Brasil e 62% das mulheres negras adultas são vítimas de feminicídio num país que usa máscaras, que se veste com a camisa verde e amarela para festejar o ouro olímpico de uma mulher negra maior atleta do país, melhor atleta da história olímpica brasileira. Somos um povo que sabemos fingir não como diria o poeta português Fernando Pessoa “O poeta é um fingidor. Finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente.”
Falar desse fingimento de que o povo brasileiro está engolindo o ouro olímpico de Rebeca Andrade com amor e emoção parece até utópico, pois como amar uma mulher negra, ter orgulho dela se matamos as nossas mulheres pretas nas favelas e periferias dos grandes centros urbanos, acusando-as de traficantes e esposas de bandidos?
Maltratamos as nossas mulheres pretas todos os dias nas lojas dos shopping centers, nos supermercados, nas escolas e nas diversas instituições públicas onde a maioria dos concursados é formada de mulheres brancas. O pódio olímpico de hoje na ginástica artística foi de um orgulho imenso para um povo que todos os dias sofre racismo das mais diversas áreas da sociedade formado pelas grandes atletas Rebeca Andrade, Simone Biles e Jordan Chiles. Três mulheres pretas que driblaram a branquitude e quebraram estereótipos.
Como dizia o nosso querido técnico de futebol Zagallo “vocês vão ter que me engolir”, Rebeca Andrade e as outras duas atletas americanas que formaram o pódio olímpico com ela hoje pela manhã disseram ao mundo. Vão ter que engolir que três mulheres pretas são as melhores do mundo num esporte feito para mulheres brancas.
O feito é de Rebeca Andrade, nossa mulher preta brasileira que traz pra casa, pra um país racista, um ouro que representa a luta da mulher preta pelo seu lugar de vencedora numa sociedade racista e preconceituosa que a vê como uma lavadora de roupas, empregada doméstica ou outra profissão simples qualquer. Não que estas profissões sejam de menor valor, mas que a mulher preta nunca foi vista como uma rainha ou miss universo. Estamos chegando longe, mulheres pretas!
E o povo preto no Brasil ainda sofre racismo, ainda é morto todos os dias pelos nossos policiais militares nas favelas do Rio de Janeiro e em outros grandes centros urbanos sempre confundidos com bandidos e traficantes. Este é um povo que luta todos os dias pela sua dignidade, pelo seu lugar no mundo, pelo reconhecimento de sua cor e de seus direitos.
Fomos um dos últimos países das Américas a libertar os nossos escravos. E mesmo assim depois de os libertarmos não lhes demos as condições necessárias para que pudessem trabalhar e serem livres de verdade, e há mais de um século continuamos fazendo isso. O povo preto não tem lugar na sociedade elitista e branca do Brasil.
Aonde chega um negro simplesmente é logo visto com um olhar de desconfiança. A branquitude ainda é grande na sociedade brasileira, mas quer queiram quer não, muitas dessas pessoas que ontem não comemoraram o nosso ouro olímpico por ter vindo de uma mulher preta vão ter que engolir que elas estão chegando para mostrarem quem são e o que podem fazer dentro e fora do esporte.
Primeiro vieram as cotas sociais nas universidades públicas que deram o direito de muitos pretos chegarem ao ensino universitário e agora apesar de pouco investimento e iniciativas públicas, temos visto um pequeno movimento nas periferias de organizações sem fins lucrativos que vão atrás dessas mesmas meninas pretas para lhes darem uma oportunidade.
Alguém lá fora já percebeu que as mulheres pretas brasileiras não sabem apenas sambar, mas são médicas, juízas, professoras, advogadas e agora atletas medalhistas olímpicas. Estamos mostrando a força da mulher preta brasileira de pouquinho em pouquinho, mas um dia chegaremos lá com ajuda nacional ou internacional, as modelos brasileiras pretas já começam a se destacarem nas passarelas de Paris. E foi em Paris onde o nosso sonho olímpico do lugar mais alto no pódio foi escrito por uma mulher negra!
Viver num país como o Brasil onde o racismo ainda é grande é um desafio. É todos os dias ter que fazer a travessia de uma ponte sem saber o que nos espera lá na frente.
Contudo, a mulher preta não é mais vista como a Tia Anastácia criada pelo escritor racista Monteiro Lobato, mas agora ela chega e cumpre o seu papel nas instâncias mais altas da sociedade apesar de ainda sofrerem todas as opressões agressivas e inimagináveis. Não vão nos parar mais, quebramos as correntes! Agora sabemos que podemos chegar ao mais alto lugar do pódio: o ouro é de uma mulher preta e chorem os brancos indignados.
Tenho certeza de que a nossa querida Carolina de Jesus estaria com lágrimas nos olhos até agora com este grande feito de Rebeca Andrade no dia de hoje assim como a nossa amada antropóloga americana Zora Neale Hurston que sempre lutou para acabar com a segregação do seu povo na Flórida contando em livro a sua experiência de ser uma mulher negra escritora, roteirista e folclorista.
O mais importante é que a maior medalhista olímpica brasileira é uma mulher preta e que ninguém pode tirar isso dela, representando a mulher negra que foi escravizada durante anos tendo que ficar na cozinha ou sendo ama de leite de crianças filhas de mulheres brancas. A nossa querida Rebeca Andrade é ouro, e este ouro é só o começo do grito da mulher preta contemporânea que nunca mais vai abaixar a sua cabeça para a branquitude nojenta e horrível que se impregna dentro de uma sociedade mesquinha e opressora. O ouro está no peito de uma mulher preta.
Para finalizar, deixo vocês com os versos do poema “Humanidade” da poeta Carolina Maria de Jesus que nos diz
“Depôis de conhecer a humanidade / suas perversidades / suas ambições / Eu fui envelhecendo / E perdendo as ilusões / o que predomina é a maldade…”
É triste saber do sofrimento e opressão pelo qual passou a nossa poeta, mas a história se reescreve, amada Carolina, e em pleno século XXI nasce uma menina preta paulistana de 25 anos que só envelhece a branquitude, pois o seu sorriso no lugar mais alto do pódio de hoje foi o de uma criança que vê o mundo pelos olhos de quem sabe enfrentar à dureza da cor da pele estampada nos pratos de ouro dos senhorios da sociedade brasileira.
Rebeca Andrade, obrigada por você ser tão grande! Espero que a partir de hoje a mulher negra seja vista com outros olhares, pois tudo podemos, até mesmo ganharmos ouro olímpico numa país onde desfilam as mulheres brancas da alta sociedade brasileira porque uma pobre preta de periferia não tem o direito sequer de viajar para ver os seus parentes que moram distante, não temos dinheiro o suficiente para luxos e lazer.
Trabalhamos todos os dias para sobrevivermos, e você treina todos os dias para nos colocar no lugar mais alto do pódio. O Brasil até agora ganhou duas medalhas de ouro e estas duas vieram da luta e da coragem de duas mulheres pretas. Valeu, Rebeca e Bia! Vocês são as pretas mais lindas do Brasil até que outra história seja escrita.
Autora: Rosângela Trajano. Também escreveu e publicou no site “Os diversos Pelezinhos da minha rua”: https://www.neipies.com/os-diversos-pelesinhos-da-minha-rua/
Edição: A. R.