A história vestida de bombachas

1982

Estamos em mais uma Semana Farroupilha ou da fantasia. Autoridades e a mídia passam tecendo loas sobre a República Rio-Grandense e seu lema calcado na liberdade, igualdade e humanismo, devidamente cabresteados pelo MTG. A história, mais uma vez, será deixada de lado. Uma tradição inventada renova-se a cada Semana Farroupilha e invade até as salas de aula.

A fantasia toma ares de realidade. Rádios, jornais, televisão preferem adular o conservadorismo e a ignorância para garantir sua “audiência”. Na verdade foi uma “república de estancieiros”, na qual à peonada coube apenas “dançar”, que vendeu negros para se financiar e que os traiu em Porongos.

“A tese orientadora do “bom gaúcho” provavelmente tem origem nas elaborações do tradicionalista Antônio Augusto Fagundes, por volta de 1940, que escreveu sobre os hábitos e costumes diferenciados dos gaúchos sul-rio-grandenses, em relação aos diferentes tipos de gaúchos que vagueavam pelos campos da região platina”. (Setembrino Dal Bosco)



Esquecem também os arautos gaudérios que os farroupilhas foram indenizados pelo Império com verbas secretas e que brigaram pelo dinheiro. Ignoram, igualmente, que o Acordo de Ponche Verde foi, na verdade, uma rendição. Isto é, perdemos a guerra. Os farrapos pediram perdão a D. Pedro II, foram indenizados, e se recolheram.

O metegismo desconhece que Domingos José de Almeida tentou escreve um relato sobre a guerra. Recolheu material, mas um grupo contrário o impediu de continuar em seu trabalho: “ não querem que eu escreva esta história”, revelou Domingos. Foi silenciado, porque conhecia perfeitamente o passado recente e as práticas de seus pares. Enfim, foi censurado.

Não há dúvidas de que a Guerra Civil dos Farrapos é um dos grandes acontecimentos da história brasileira. Foi a primeira vez no Império que existiu uma República funcionando durante quase nove anos com ministérios, serviço de correio, Assembléia Legislativa, tesouro nacional, relações diplomáticas e soberania de governo. Entretanto, ao confrontar a documentação, como alerta o historiador Moacyr Flores, “ nota-se que há uma tradição inventada que se renova a cada Semana Farroupilha”.

 Em 2007 foi lançado o Manifesto contra o Tradicionalismo, elaborados por historiadores de grande nomeada.

Nele os autores do manifesto alertaram que na vivência memorialista ,na mídia de massa e nas celebrações de efemérides o MTG “pratica a demência cronológica e estatística, impondo a deturpação de que o povo se levantou contra o Império e os imigrantes e seus descentes também cultuaram a Revolução Farroupilha, quando quase em sua totalidade, não estavam no Rio Grande do Sul entre 1835 e 1845.

 Se um dia aportaram no Brasil, isso se deve ao projeto de colonização do Império. Os projetos de colonização fundamentais, contribuíram para a formação do Rio Grande do Sul contemporâneo, não pertenceram aos farroupilhas”. Trata-se, portanto, de uma façanha de mentira.

Também é preciso lembrar que, militarmente, no auge de suas ofensivas, as tropas farroupilhas jamais passaram de 6 mil homens em uma demografia oficial de cerca de 400 mil habitantes.

Cidades como Porto Alegre, Rio Pardo, Rio Grande, Pelotas, São José do Norte lutaram ao lado do Império e, hoje, como revela Moacyr Flores, “realizam comemorações da guerra civil, como se os antigos habitantes tivessem apoiado os farroupilhas”. O Acampamento Farroupilha, segundo o historiador, “apaga da memória o fato de a capital provincial ter expulso os republicanos e resistido ao cerco dos rebeldes e, por isso, ganhou o título de Leal e Valerosa”.

Fica claro que a expressiva maioria estava em armas a favor do Brasil, ou alheia à guerra civil, além daqueles que fugiam da arregimentação obrigatória. É a Semana da Fantasia, na qual é cultivada a mitologia da identidade e a ilusão daquilo que nunca fomos.

Historiadores demonstram que o MTG funciona como um órgão central de adestramento, orientação e controle do tradicionalismo, impondo cartilhas de comportamento e visão sobre o passado, o lugar e o futuro de seus militantes. Defende que suas “práticas” decorrem como sucedâneas da história. A historiografia, sociologia, antropologia críticas e o jornalismo culto refutam suas “verdades”.

Na sua visão anacrônica da sociedade, buscam formar peões e prendas alienados e obedientes.Com seu viés fundamentalista pilchado, o movimento seleciona, consagra e reconhece as manifestações que comungam com sua visão de memória, de cultura.

Tudo é considerado gauchesco e transformado em sua aparência. Grupos sociais e a historicidade dos lugares não são respeitados. O controle metegista produz intolerância, xenofobia e uma incapacidade de visão crítica da sociedade rio-grandense e do mundo.

Como escreveu o historiador Tau Golin, “setembro virou um agosto temporão. Nunca se viu uma derrota tão completa da racionalidade e do conhecimento. Vestiram bombachas na história. Os historiadores (anulados pelos patrões dos CTGs e seus agregados das falas), a pesquisa acadêmica, os escritores e os artistas desruticizados são relegados à invernada do silêncio. Secam-se as fontes do saber nas guampas de canha”.

Todo o resto está ameaçado pelas lanças da ignorância estancieira, brandidas por tipos de todas as classes, como possíveis vítimas para a carga dos piquetes da “tradição”. Decreta-se a derrota da historiografia e o passado apenas fornece a matéria para um vaneirão aporreado no galpão da memória”.

 Neste 20 de setembro vou matear, ouvindo Noel Guarani, Vitor Ramil e outros mais e buscar refúgio em alguma das obras de Tau Golin, Mário Maestri, Moacyr Flores, Décio Freitas, Sandra Pesavento ou de Juremir Machado. Neles ainda encontramos o que restou do bom senso na história rio-grandense.

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