A intolerância fragiliza a democracia

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A intolerância produz ódio, autoritarismo, obscurantismo, perseguição, estreiteza de pensamento. O pensamento de Locke nos alerta para prestarmos atenção às intolerâncias que estão em curso no nosso tempo e ameaçam a sobrevivência de nossa frágil democracia.

A intolerância é a atitude típica de que se considera melhor que os outros, dos conservadores reacionários que acreditam que o presente e o futuro devem imitar o passado, que seus costumes ou valores são os melhores para a espécie humana.

Historicamente a intolerância sempre se fez presente no campo religioso, político, filosófico, ideológico cultural. A intolerância motivou e mobilizou perseguições, guerras, extermínios, genocídios e tantas maldades que estão registrados nos livros de história, na literatura, nas obras de arte, nos documentários e nas peças teatrais e em tantas outras expressões culturais. A intolerância provoca medo, ódio, ressentimento, violência, morte.  

O avanço civilizacional dependeu e depende do enfrentamento da intolerância. Um dos pensadores que se debruçou para enfrentar o problema da intolerância foi o britânico John Locke.

John Locke (1632-1704), um dos mais importantes e significativos pensadores ingleses da segunda metade do século XVII, viveu numa época muito turbulenta da história da Inglaterra. Descendente da pequena burguesia mercantil e filho de defensores do parlamentarismo, dividiu seu tempo e sua atenção a diversos campos do saber e da atividade humana: da administração pública às polêmicas religiosas; do exercício à medicina à pedagogia e à política. No campo da filosofia, escreveu diversas obras que o tornaram um dos mais importante filósofos modernos da língua inglesa no campo do conhecimento e da política.

Considerado o pai do liberalismo moderno, Locke entrou na história como alguém que sempre lutou por um espírito de tolerância que representasse a liberdade de crença e permitisse a fecunda convivência das pessoas com ideias diferentes.

Escreveu durante 20 anos a obra intitulada Ensaio sobre o entendimento humano, na qual compreende a filosofia como tendo a tarefa crítica e preparatória para a construção da ciência.

“Meu trabalho”, diz Locke, “é como o de um ajudante de jardinagem, preparando o terreno e removendo o entulho que atrapalha o caminho do conhecimento”. Os entulhos são para Locke os preconceitos, as crenças errôneas, as falsas noções, as compreensões equivocadas das ideias, o modo deturpado de ver o mundo. Todos estes entulhos provocam prejuízo no processo de apropriação e construção do conhecimento. E são estes entulhos que nos tornam ignorantes, autoritários e intolerantes.

A Carta acerca da Tolerância é um dos escritos de Locke mais conhecidos no mundo todo. Neste texto o pensador inglês aborda o problema das questões religiosas que, conforme sua interpretação, em sua época provocavam os principais conflitos na Europa e em todo mundo. Esses conflitos se tornam mais perigosos quando a religião passa a interferir nas decisões do Estado e da sociedade.

No início da Carta, Locke ressalta que os homens que se dizem religiosos estão mais preocupados em galgar cargos, dentro das distintas organizações sociais e políticas, do que cumprir os verdadeiros dogmas da religião cristão, que consiste em praticar caridade, brandura e amor com os crentes e os não crentes; sem essas qualidades, um homem não pode ser chamado de religioso, mesmo que diga ser um fervoroso devoto.

Locke defende que Estado e Religião deveriam sempre estar separados, pois enquanto o primeiro deve elaborar leis imparciais que possibilitam punir quem ameaça a harmonia social, privando-o da liberdade ou dos bens, a segunda (a religião) deve primar pela persuasão, convencer pelo argumento que leva o esclarecimento que nos conduz a um mundo melhor, de tolerância ao diferente e de convivência pacífica, enfim um mundo que seja promotor de vida para todos. Esse deveriam ser para Locke o legado de todas as religiões e a forma mais adequada de organizar uma sociedade. Para isso, Religião e Poder do Estado não podem estar misturados.

Quando a Religião e Poder do Estado se misturam, temos o início da intolerância, as formas autoritárias e despóticas de governar e o rompimento das possibilidades de uma sociedade liberal democrática.

Mais de 300 anos nos separam da época em que Locke escreveu a Carta acerca da Tolerância. Parece que em alguns aspectos aprendemos pouco dos seus sábios ensinamentos. Se prestarmos atenção aos acontecimentos políticos da atualidade, vemos que a intolerância se tornou ordem do dia, religião e poder do estado estão intimamente ligados e o caos social se faz sentir em todas as partes.

Muitos que se intitulam “liberais” estão muito longe de entender os pressupostos fundamentais do liberalismo que possibilitaram as democracias modernas. Quem não é capaz de compreender e praticar a tolerância não pode se dizer liberal e muito menos democrático.

A intolerância produz ódio, autoritarismo, obscurantismo, perseguição, estreiteza de pensamento. O pensamento de Locke nos alerta para prestarmos atenção às intolerâncias que estão em curso no nosso tempo e ameaçam a sobrevivência de nossa frágil democracia.

Autor: Dr. Altair Alberto Fáveroaltairfavero@gmail.com. Autor de outras 54 crônicas já publicadas no site, dentre elas, “O conhecimento para vencer o mundo das sombras”:https://www.neipies.com/o-conhecimento-para-vencer-o-mundo-das-sombras/

Imagem de capa de Freepik.

Edição: A. R.

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