O silêncio desses
espaços infinitos
me apavora
(Pascal)
“Liberdade,
essa palavra que o sonho humano alimenta:
que não há ninguém que explique,
e ninguém que não entenda”
(Cecília Meireles)
A liberdade como problema filosófico
A frase acima de Cecília Meireles nos transporta para a história. Não é de hoje que a liberdade é almejada, seja no ideário da Liberdade Igualdade e Fraternidade da Revolução Francesa de 1789, seja na Liberdade ainda que tardia da Inconfidência Mineira. A expressão liberdade, grafada em tantos monumentos e pichada em tantos muros parece indicar o caminho da felicidade humana. Por que, então, a liberdade precisa ser colocada em questão? Afinal de contas, somos seres livres ou somos determinados por condições alheias às nossas vontades?
Partimos da premissa de que o homem é um ser livre porque age e organiza o mundo bio-físico de acordo com a sua vontade. Marx dizia que “uma aranha executa operações que se assemelham às manipulações do tecelão, e a construção das colmeias pelas abelhas poderia envergonhar, por sua perfeição, mais de um mestre-de-obras. Mas há algo em que o pior mestre-de-obras é superior à melhor abelha, e é o fato de que, antes de executar a construção, ele a projeta em seu cérebro”. Com esta afirmação Marx identifica a atividade humana como uma atividade livre e autônoma, motivada por uma escolha e por uma vontade. Nesta perspectiva o homem é um ser diferente das outras coisas por ser livre.
A pobreza é um dos grandes limitadores da liberdade humana. Questionar sobre o sentido da existência humana é perguntar-se sobre o que é a liberdade. Se somos um ser que age livremente e esta ação produz consequências não somente para mim, mas para toda a humanidade, precisamos questionar os fundamentos da liberdade humana para visualizar perspectivas e caminhos para a realização humana.
Refletir sobre a liberdade humana é refletir sobre a própria condição humana, pois o homem vive em comunidade e a sua ação produz consequências nos seus semelhantes. Portanto, a liberdade é uma dimensão constituinte do ser humano na medida em que projeta a convivência social do homem e o seu fazer no mundo da vida. A liberdade é sempre em relação com o outro, pois o modo de vida que o homem adota irá influenciar diretamente a liberdade do outro, da felicidade depende de um depende, necessariamente, da felicidade do outro.
No entanto, vivemos em um mundo marcado pela violência. Filhos matam os próprios pais, psicopatas e matadores em série fazem da morte o objetivo central das suas vidas, homens estupram crianças.
Cabe, então, a pergunta: até onde vai a minha liberdade? Como não fazer do outro um simples meio para minha felicidade? Como assegurar que o meu desejo de liberdade e felicidade preserve o desejo de liberdade do outro? Será que a liberdade que torna o ser humano em criatura especial na natureza, não é a sua própria prisão, como disse o filósofo francês Jean Paul Sartre “O homem está condenado a ser livre”? Não seria a liberdade a causadora dos conflitos sociais e da violência? Até que ponto a nossa sociedade nega a liberdade humana, sendo que negar a liberdade é, também, negar a felicidade?
Karnal: afinal, o que vem a ser o conceito de liberdade? Historiador explica as diferentes concepções sobre esse conceito, muito debatido desde a antiguidade.
A Liberdade entre o determinismo e o livre-arbítrio
Se é verdade que somos seres que agem livremente, de acordo com a vontade, também é verdade que somos um seres de necessidades espirituais e materiais, e estas necessidades nos impedem de exercer nossa liberdade, uma vez que a sua falta nos impossibilita a própria existência. Como posso, então, ser livre? A partir deste questionamento surge a teria do Determinismo que “parte do princípio de que tudo que existe tem uma causa. O mundo explicado pelo determinismo é o mundo da necessidade, e não da liberdade. Necessário significa tudo aquilo que tem de ser e não pode deixar de ser”[1]. Esta teoria argumenta que o homem é determinado pelas circunstâncias que o rodeiam e que toda a decisão é fruto de um conjunto de “pressões externas” que o impelem a agir desta ou daquela maneira.
Em contraponto a esta teoria surge a ideia do livre-arbítrio que considera a ação humana livre em plenitude, sendo que a ação humana é livre a ponto de agir a partir da escolha, independente das condições externas que atuam sobre ele.
Para esta teoria “ser livre é agir como se quer, sem qualquer determinação casual, quer seja exterior (ambiente em que se vive), quer seja interior (desejos, caráter).”[2]Esta concepção considera o homem isoladamente enquanto agente.
Estamos diante de duas concepções bastante diferentes. Qual o conceito que mais se identifica com a natureza humana? Afinal de contas, o homem é livre ou determinado. Entretanto, se analisarmos a questão da liberdade de uma forma mais abrangente poderemos fazer uma espécie de síntese entre os conceitos do Determinismo e do Livre-Arbítrio afirmando que o homem é livre e determinado na medida em que se conscientiza de tudo aquilo que o determina e escolhe agir de acordo com a sua consciência, podendo, inclusive, livrar-se de alguns determinismos que tolhem a sua liberdade. Desta forma, a consciência irá orientar escolhas e estas escolhas traduzirão ações que por sua vez serão livres e autônomas. No entanto, cabe a consciência orientar estas ações na perspectiva da responsabilidade moral, comprometendo o agente com a felicidade e liberdade do outro.
“Ai de nós, a tragédia é que não sabemos ser livres – pedimos para nós mesmo, em detrimento dos outros, e não queremos renunciar a nada de nós mesmos em prol do outro: isso significa usurpar nossos direitos e liberdade pessoais. Hoje, todos nós estamos contaminados por um egoísmo extraordinário e isso não é liberdade: liberdade significa aprender a exigir apenas de si mesmo, na da vida dos outros, e saber como doar: significa sacrifício em nome do amor”
Tarkovski.
Concepções de liberdade
Durante a história da filosofia não faltaram pensadores que se debruçaram sobre a questão da liberdade humana. O resultado deste esforço são concepções distintas que certamente são fruto do contexto historio de cada homem e mulher que problematizaram a liberdade humana. Aqui apresentaremos as três principais concepções filosóficas de liberdade humana:
- 1) Fundada por Aristóteles na obra Ética a Nicômaco retomada por Sartre no século XX. Segundo esta concepção, a liberdade é fruto da escolha deliberada, rechaçando qualquer determinismo externo e contingência da ação humana. “A liberdade é compreendida como poder pleno e incondicional da vontade para determinar a si mesma ou para ser autoderteminada”[3]. Para esta concepção a liberdade consiste em escolher entre várias alternativas possíveis. Esta escolha é motivada pela razão consciente. Sartre dirá que a liberdade é uma escolha incondicional que o homem faz na sua ação. Mesmo quando afirma que o homem é um ser condenado a ser livre, Sartre parte do pressuposto que somos livres tanto para termos liberdade, quanto para perde-la.
- A segunda concepção tem sua expressão em Spinoza, Hegel e Marx e aceita a ideia de que a liberdade é fruto da vontade e da livre escolha da consciência. No entanto, o indivíduo, como parte de um todo, deverá agir, conscientemente segundo as leis da totalidade que é livre em si mesma na medida em que não é determinada. É a totalidade que estabelece a leis e normas que devem ser seguidas por livre adesão pelos que fazem parte dela. Nesta perspectiva “liberdade não é escolher nem deliberar, mas agir ou fazer alguma coisa em conformidade com a natureza do agente que, no caso, é a totalidade.”[4]
- A terceira noção de liberdade considera livre toda ação que carrega consigo a possibilidade objetiva para sua consecução. O possível é o que é fruto da nossa própria ação. “A liberdade é a capacidade para darmos um sentido novo ao que parecia fatalidade, transformando a situação de fato numa realidade nova.”[5] A partir desta concepção, a liberdade não tem sentido se só estiver em uma perspectiva formal ou no campo dos valores do bem, da justiça e da solidariedade. A liberdade passa a ter sentido na medida em que o ser humano concretiza as condições materiais e espirituais fundamentais para o exercício desta liberdade. E para concretizar o que é possível, primeiro é preciso dar-se conta da contradição existente entre o real e o ideal, depois é preciso identificar espaços na sociedade para aproximar o real do ideal. Um terceiro momento desta escalada para a liberdade é a decisão de fazer algo e escolher os meios adequado para concretizar a decisão. Por último é preciso realizar a ação, lutar para transformar um possível em realidade.
Nessa aula vou sintetizar em poucos minutos a relação entre as seguintes expressões muito comentadas de Jean-Paul Sartre: “A existência precede a essência”, “o homem está condenado a ser livre”, as quais constituem pilares de sua filosofia e de sua antropologia.
Autor do texto: Jandir Pauli, professor do PPG em Administração da IMED, graduado em Filosofia e Doutorado em Sociologia.
Sugestões para uma prática pedagógica
Esta atividade pode ser aplicada a estudantes de Oitavo Ano do Ensino Fundamental ou em turmas de Ensino Médio.
No Oitavo Ano, Unidade temática: Ética: Objetos de Conhecimento: Refletindo sobre temas éticos e morais/ Liberdade. Habilidades: examinar temas e problemas que envolvem a vida cotidiana do adolescente, reconhecendo a possibilidade de fazer escolhas e justifica-las.
Questões para pensar:
1) Pra você, o que significa ser livre?
2) Como o homem se diferencia dos animais pela liberdade?
3) Faça um paralelo entre o determinismo e o livre-arbítrio.
4) Cite um exemplo de cada uma das três concepções filosóficas de liberdade humana em nossa sociedade.
5) Observando a realidade de sua cidade, você considera que as pessoas que caminham pela rua são livres?
6) Quais são as ações que ameaçam a liberdade individual e coletiva?
7) Por que a liberdade deve ser uma conquista construída a partir da consciência?
8) Assista ao vídeo do historiador Leandro Karnal e faça um breve resumo sobre como a concepção de liberdade vem mudando desde a Antiguidade até os dias atuais.
* Estas questões foram elaboradas pelo professor Alex Rosset, professor de filosofia e ensino religioso na rede municipal de Passo Fundo, RS)
[1] ARANHA, Maria Lúcia de Arruda e MARTINS, Maria Helena Pires, Filosofando: Introdução à Filosofia. São Paulo: Moderna, 1986. p. 316.
[2] Idem. p 316.
[3] CHAUI, Marilena, Filosofia: novo Ensino Médio. São Paulo: Ática, 2001, p.182.
[4] Idem, p. 183.
[5] Idem, p. 185.