O excesso de controle, de burocratização, de autoritarismo, de instrumentalização, de acusações, de soluções midiáticas, de produtividade, assim como a pobreza das práticas, das políticas educativas, dos programas de formação de professores, das práticas pedagógicas, das práticas associativas docentes, das práticas solidárias e colaborativas produzem formas de barbárie e processos de barbarização que contaminam os tempos e espaços escolares e os próprios sujeitos envolvidos.
Reli recentemente um artigo publicado há mais de um quarto de século do professor e pesquisador português António Nóvoa (1999), intitulado “Os professores na virada do milênio: do excesso dos discursos à pobreza das práticas”.
Suas reflexões são assertivas na denúncia da “lógica excesso-pobreza”: de um lado o excesso dos discursos, da retórica política, das linguagens dos especialistas, do discurso científico-educacional, das “vozes” dos professores; do outro lado, está a pobreza das práticas, das políticas educativas, dos programas de formação de professores, das práticas pedagógicas, das práticas associativas docentes.
Interessante notar que o excesso se dá no âmbito das palavras, na multiplicação de discursos, no exagero da retórica, na infinidade dos que falam em nome dos professores; a pobreza, por sua vez, apresenta-se no âmbito da prática, na efetivação das políticas educativas, na execução de programas de formação de professores bem planejados e condizentes com a realidade, no fazer das práticas pedagógicas e na capacidade de mobilizar práticas associativas entre os docentes.
O dito popular “falar é fácil, fazer é mais difícil e complicado” traduz, de certa forma, essa lógica excesso-pobreza”.
Não se trata aqui de dizer que há uma oposição entre “discursos” e práticas”, ou de que um nega completamente o outro, ou ainda, que só deveria ter “práticas” e que estas seriam melhores sem os “discursos”.
Conforme argumenta Nóvoa (1999, p.13), os “discursos induzem comportamento e prescrevem atitudes razoáveis e correctas” bem como “constroem uma ideia da profissão docente que, muitas vezes, não corresponde à intencionalidade declarada”. Assim, presencia-se o excesso de retórica política em prol da importância dos professores para promover o civismo e a formação dos profissionais para mercado de trabalho, ao mesmo tempo que as condições de trabalho de remuneração desses mesmos professores são cada vez mais precarizadas.
A pobreza das políticas educativas se faz sentir todos os dias, não só nas condições de trabalho e na péssima remuneração, mas também na forma como são frequentemente atacados os professores como sendo mal formados, medíocres ou ideologicamente doutrinadores.
Instaura-se um círculo vicioso de forma que os cursos de formação inicial de professores (licenciaturas) não se tornam mais atrativos para jovens que tem um bom desempenho escolar. Estes escolhem outras profissões mais rentáveis e com maior status social. Por consequência, os poucos alunos que ainda optam pelos cursos de licenciatura, além de possuírem profundas e visíveis lacunas em sua formação de educação básica, estão sobrecarregados por uma longa e mal remunerada jornada de trabalho fazendo com que muitos deles desistam de seus cursos ou, quando conseguem chegar até a formatura, carregam consigo a marca de uma precária formação.
A fragilidade decorrente do círculo vicioso da formação produzida nas instituições universitárias, contraposta às exigências de que a educação tem de preparar profissionais de alto performance para o mercado de trabalho abre espaço para o excesso dos discursos dos especialistas ligados aos organismos internacionais que passam a semear soluções prospectivas mágicas com linguagens sedutoras.
“Sociedade educativa”, “sociedade aprendente”, “sociedade do conhecimento”, “sociedade da inovação”, “sociedade criativa”, “educação tecnológica”, “aprendizagem baseada em problemas” são algumas das promessas que se fazem presentes nos documentos destes organismos e que inflacionam seu papel de protagonistas para induzir ou ditar as agendas das políticas educacionais.
Embora tais documentos explicitem a “centralidade dos professores” dizendo que é necessário “trazer outra vez os professores no centro dos processos sociais ou econômicos”; “os professores têm de voltar para o centro das estratégias culturais”, “os professores são os profissionais mais relevantes na construção da sociedade do futuro”, “os professores estão no coração das mudanças” (OCDE,1998), são especialistas, a maioria dos quais não possui formação em educação, que ditam como devem ser esses professores, como deve ser sua formação e quais deverão ser suas características.
Na prescrição de tais especialistas, a educação tem de estar centrada em “sistemas rigorosos de avaliação” (“acreditação” é o nome utilizado nos documentos) a fim de garantir a qualidade educativa. Assim, denuncia Nóvoa (1999, p.14), “consolida-se um ‘mercado da formação’, ao mesmo tempo que se vai perdendo o sentido da reflexão experiencial e da partilha de saberes profissionais”. A formação tornou-se negócio para enriquecer grupos econômicos que usam a formação (treinamento) de professores uma forma de ganhar muito dinheiro, inclusive com recursos públicos.
A lógica excesso-pobreza também tem sua materialidade na tensão entre pesquisadores e professores na educação básica.
O crescimento da pós-graduação no Brasil nas últimas duas décadas, impulsionadas pelas políticas governamentais implantadas, de modo especial pela Capes, fez com que milhares de investigadores na área da educação passassem a produzir uma quantidade expressiva de dissertações, teses, artigos, coletâneas e trabalhos científicos apresentados em dezenas de eventos altamente reconhecidos pela comunidade científica. São pesquisas que problematizam temáticas recorrentes no campo da formação de professores e que certamente poderiam trazer diversas contribuições para o campo das práticas. No entanto, aqui também se faz presente os “excessos” e as “pobrezas”.
Excesso de produtividade dos pesquisadores destinada a dar conta das exigências de avaliação da Capes; pobreza na apropriação desta produção por parte dos professores que estão no cotidiano das escolas públicas da educação básica que se veem cada vez mais atarefados, sem tempo para estudar e refletir sobre suas práticas; excessos de “responsabilização” dos professores pelo péssimo desempenho dos alunos; pobreza nos investimentos públicos para a formação de professores das escolas públicas; excessos de “mal-estar” docente que se sente “refém da má qualidade de ensino que ele próprio recebeu” (Zagury, 2006); pobreza na forma simplificada como os mercenários da educação apresentam as soluções para enfrentar a formação de professores; excessos de individualismo e competição; pobreza de práticas solidárias e cooperativas de estudo e de planejamento; excessos de plataformas digitais e soluções midiáticas; pobreza de estudos coletivos e interações coma comunidade escolar.
No fio argumentativo deste texto, acompanhando os passos de Nóvoa (1999), é possível dizer que tanto o excesso de controle, de burocratização, de autoritarismo, de instrumentalização, de acusações, de soluções midiáticas, de produtividade, assim como a pobreza das práticas, das políticas educativas, dos programas de formação de professores, das práticas pedagógicas, das práticas associativas docentes, das práticas solidárias e colaborativas produzem certas formas de barbárie e processos de barbarização que contaminam os tempos e espaços escolares e os próprios sujeitos envolvidos.
Para além de encontrar culpados ou de naturalizar as problemáticas complexas do Ensino Superior e da Educação Básica, torna-se importante compreender os processos de contradições que vive o docente universitário e o professor da educação básica na lógica excesso-pobreza dos tempos atuais.
Como o professor percebe estas contradições? De que forma ele pode enfrentá-las? Que estratégias se mostrariam promissoras para contornar ou ultrapassar tais contradições? Existem possibilidades? Tratarei destas questões num próximo escrito.
Referências:
NÓVOA, António. O professor na vidada do milênio: do excesso dos discursos à pobreza das práticas. Educação e Pesquisa. São Paulo, v.25, n.1, p.11-20, jan./jun, 1999.
ZAGURY, Tania. O professor refém. 4 ed. Rio de Janeiro: Record, 2006.
Autor: Altair Alberto Fávero – altairfavero@gmail.com.br Professor e Pesquisador do Mestrado e Doutorado em Educação da UPF. Também escreveu e publicou no site “A formação da autonomia discente e o papel da autoridade docente”: www.neipies.com/a-formacao-da-autonomia-discente-e-o-papel-da-autoridade-docente/
Edição: A. R.
Parabéns pela reflexão Altair. É uma síntese que representa muita densidade de uma temática tão importante: formação e valorização docente.