A merenda escolar mata duas fomes

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Matando a fome física matamos
também a fome do conhecimento,
pois na escola a criança passa a amar os estudos,
a valorizar o saber e muitas delas são “salvas”
pela merenda escolar.


É fato que o Brasil ainda é um país de desigualdades sociais enormes. Em algumas regiões, crianças são desnutridas e muitas delas passam fome, ou seja, não têm o que comer em casa. A fome é o pior mal do século vinte e um.

Inventamos todos os dias máquinas capazes de imitar as emoções humanas, mas ainda não descobrimos uma solução para a fome. Essa fome que enfraquece o corpo e mata milhões de crianças no mundo inteiro, principalmente no continente africano. É triste ver uma criança pedindo um pão nos semáforos das grandes avenidas das cidades. É triste quando vemos os pais com os filhos nos braços de casa em casa pedindo um pouco de comida. Porém, essa cena tem crescido nos últimos anos.

Não é verdade que estamos vivendo melhor no nosso país. O número de pessoas desempregadas cresceu, o trabalho informal também cresceu e as pessoas lutam de todas as formas para trazer comida pra casa. Com tantos impostos que temos para pagar acabamos comprando apenas o básico, ou seja, feijão e farinha. Isso quando o preço do feijão está num valor que um assalariado pode comprar, porque há alguns meses vi nas prateleiras do supermercado um quilograma de feijão chegar a nove reais.

Os direitos universais das crianças, afirmados pela UNESCO, garantem uma vida digna para todas, porém não é o que enxergamos viajando pelas regiões mais carentes do nosso país.

Chega a doer na alma ver os ossinhos das crianças aparecendo de tão magrinhas, porque não têm alimento em casa. Desde a tenra idade as crianças aprendem a conviver com a hora incerta de comer porque nunca sabem quando terá comida na mesa. É uma alegria ganhar restos de comidas de alguns restaurantes que se compadecem dessas crianças que andam pelas ruas vazias de tudo, principalmente de comida. Não é raro ver crianças à procura de comida nas latas de lixo deixadas em frente dos grandes condomínios residenciais. A fome mata aos poucos. É a pior morte que pode existir.

Ademais, quero falar de outra fome, essa talvez menos explorada no nosso país, mas que acho de tamanha importância para o desenvolvimento de uma nação e para a formação do espírito do cidadão.

Falo da fome do conhecimento. Ainda vemos muitas crianças fora da escola por diversos motivos. Algumas sentem-se rejeitadas pela sociedade porque se acham pobres e feias, outras não encontram estímulos que as façam ter vontade de ir à escola e ainda há aquelas que precisam trabalhar para ajudarem a manter a casa.

Quantas crianças passam o dia inteiro nos semáforos das nossas ruas limpando para-brisas de automóveis em troca de algumas moedas. São centenas delas. Centenas que deixam de adquirir conhecimento para uma vida digna no futuro.

Apesar da nossa Constituição de 1988 garantir o ensino básico às crianças ainda faltam políticas-sociais de incentivo à instrução nos primeiros anos da infância. Conheço jovens com dezoito ou vinte anos que mal sabem escrever um bilhete, mas eles têm fome de aprender. Vejo isso em seus olhos. Necessitam apenas de um “empurrãozinho” de alguém que lhes mostre o quanto é importante o conhecimento científico. Apesar das cotas para escolas públicas e negros nas universidades serem garantidas por lei, muitos dos nossos jovens não conseguem alcançar aprovação no ENEM porque o que aprenderam na escola foi pouco diante do exigido nas provas a que se submeteram. As cotas ainda são injustas com os mais pobres e negros.

Temos muitos problemas com a fome de conhecimento, contudo sabemos que crianças e jovens têm vontade de aprender coisas novas todos os dias. Eles são curiosos.

Eles desejam ser alguém na vida no futuro, alguém importante. Eles acham bonito serem chamados de “doutores”. Precisamos alimentar essa fome com conhecimento que chegue de maneira mais prática e diversa às nossas crianças e jovens. Que possamos ter mais escolas públicas nas regiões carentes, bibliotecas, salas de leitura, laboratórios e, principalmente, a inclusão digital.

Quando falo que a merenda escolar mata duas fomes não estou enganada. Fui criança pobre e senti esses dois tipos de fome. Eu ia à escola com vontade de aprender, mas também pensando na merenda do dia.

Acredito que a maioria das crianças pobres têm essas mesmas fomes. A merenda escolar é muito importante para manter a criança na escola, pois é o maior estímulo àquelas que não têm o que comer em casa. Matando a fome física matamos também a fome do conhecimento, pois na escola a criança passa a amar os estudos, a valorizar o saber e muitas delas são “salvas” pela merenda escolar. Salvas da marginalização e do mundo dos crimes.

A merenda escolar não pode faltar nas escolas e em tempos de pandemia ela deve ser distribuída de alguma forma que possa chegar à casa das crianças junto com a lição do dia. É preciso que a merenda siga junto com a lição para alimentar as duas fomes.

A criança que tem fome física não consegue estudar, o seu cérebro não dispõe de substâncias capazes de memorizar o que lhes é passado. Se a merenda escolar contribui para melhorar os índices das crianças na escola desde a tenra idade e do maior número de jovens concluindo o ensino médio é porque ela tem fundamental importância na vida desses estudantes.

A fome do conhecimento deve ser alimentada todos os dias, também. Porém, quanto mais fome despertamos nos nossos estudantes mais conhecimento eles aprenderão, por isso faz-se necessário que professores, escolas, governantes estejam engajados num ensino-aprendizagem que se dedique aos saberes que são importantes àqueles estudantes. Saberes esses que podem ser transmitidos a partir da experiência dos seus conhecimentos de mundos, como dizia Paulo Freire. A gente tem que ensinar baseado no que o aluno vive todos os dias.

Não é verdade que os nossos jovens não querem mais saber de estudar, vão para escola porque são obrigados pelos pais, vão para escola porque é um lugar onde se sentem seguros ou vão para “bagunçar”. A maioria dos jovens quer aprender algo, quer crescer na vida e alcançar os seus sonhos.

Os jovens moradores de regiões carentes do Brasil costumam deixar seus sonhos de lado e acabam sendo “mortos” pela fome do conhecimento que não recebeu comida. Comida essa que poderia ser dada através dos nossos governantes com a distribuição de livros paradidáticos, com acesso a internet de banda larga até mesmo nos mais longínquos lugares. Afinal, vivemos e aprendemos a ler e escrever agora pelos nossos computadores.

A merenda escolar é a garantia de que as nossas crianças e jovens terão um futuro melhor, por isso ela nunca pode faltar nas escolas. Eis a razão por que ela é tão importante para o aluno, principalmente o aluno na educação infantil que corre o risco de morrer desnutrido por falta de uma alimentação de qualidade.

O papel da merenda escolar é duplo: mata a fome física e a fome do conhecimento. Os copinhos e pratinhos de plástico cheios de comida são um tesouro aos olhos dos estudantes famintos. Assim como um livro que desperte o seu interesse pela leitura ou uma aula passeio onde ele conheça outros mundos e adquira novos conhecimentos. Vamos matar a fome dos nossos estudantes. A fome que parece um fantasma na vida de quem vai dormir com a barriga vazia e se acorda no outro dia na certeza de que na escola terá comida e poderá desfrutar do prazer de comer um pedaço de pão com um copo de leite lendo um bom livro de astronomia.

A criança pobre que vai à escola com fome busca ser alimentada por comida e por instrução de qualidade. Não basta apenas sermos bons professores, a escola precisa oferecer instalações seguras e confortáveis à comunidade escolar. Conheço escolas que ficam dias sem o botijão de gás, logo deixam de fazer a merenda. Algumas sofrem com a burocracia das secretarias de educação, que trato como um descaso, pois a merenda escolar nunca deve faltar, nunca mesmo. Com isso, as crianças também deixam de ir à escola.

Que possamos alimentar a fome de conhecimento com escolas pintadas, banheiros limpos com papel higiênico, salas ventiladas e, se possível, com um vaso de flores em cima da mesa do professor.

Na minha infância estudei numa escola pública onde a merenda sempre foi garantida e todos os dias a minha melhor alimentação era feita lá. Também na escola foi onde alimentei a minha fome de conhecimento com professores que me ajudavam a cobrir as palavrinhas segurando carinhosamente na minha mão.

Foi na escola pública onde aprendi que a fome do conhecimento pode ser alimentada com cadernos e livros doados pelos nossos governantes. Ainda sinto fome de conhecimento até hoje, mas alimento-me assistindo as aulas da minha universidade que é gratuita e me oferece oportunidades de ensino, pesquisa e extensão.

Até no ensino superior encontramos auxílios de alimentação para os jovens porque é sabido que com fome ninguém consegue aprender nada. No ensino superior do turno da manhã temos dois intervalos que são oferecidos para que os alunos possam se alimentar e descansar o cérebro. Nas universidades públicas são ofertados, ainda, vários tipos de alimentos para matar a fome de conhecimento dos estudantes como bolsas de pesquisas e acesso a laboratórios de qualidade. Ainda temo essas boas coisas nas nossas universidades, mesmo que estejam aos poucos se acabando.

A fome seja qual for ela precisa de alimentos. Não deixe ninguém com fome. Doe alimentos.

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