A Mordaça ao Livro O Avesso da Pele

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O Index, o Índice dos Livros Proibidos, era uma lista de publicações consideradas heréticas, anticlericais ou lascivas e proibidas pela Igreja Católica.[1] A primeira versão do Index foi promulgada pelo Papa Paulo IV em 1559 e uma versão revista dessa foi autorizada pelo Concílio de Trento. A última edição do índice foi publicada em 1948 e o Index só foi abolido pela Igreja Católica em 1966 pelo Papa Paulo VI.[2][3] Nessa lista estavam livros que iam contra os dogmas da Igreja e que continham conteúdos tidos como impróprios.

Face à polêmica causada pela obra ficcional O Avesso da Pele, de autoria do jovem escritor Jefferson Tenório, vimos estabelecer algumas considerações sobre as mordaças (censuras) aplicadas contra as múltiplas manifestações culturais e contra os próprios artistas, os quais, em um passado muito recente foram “queimados” pelas obras que produziram. Sob essa perspectiva trataremos algumas questões sobre o livro citado e os reais motivos de retirá-lo de circulação e das bibliotecas escolares, hoje sob ordem de alguns Governadores, Secretários de Educação, diretores de escolas, pastores, vereadores, dentre outros, pelo simples motivo da linguagem ser inadequada aos estudantes do Ensino Médio. Duvido que tenham lido o romance na íntegra.   

Mal sabem os falsos moralistas de cuecas e calcinhas borradas que o romance O Avesso da Pele, publicado em 2020 pela Companhia das Letras, recebeu o maior prêmio literário brasileiro: o Prêmio Jabuti/2021. O livro aborda temas como racismo e violência policial. Escolhido pelo Programa Nacional do Livro Didático, a obra está sendo alvo de críticas ferozes pelos setores conservadores da sociedade brasileira que, mobilizada, busca retirar o livro das bibliotecas escolares e da própria circulação nas livrarias. Tanto é que o autor e a editora já entraram com Mandado de Segurança para garantir a reedição e a circulação do livro, impedindo sua circulação e leitura nas escolas. É a legítima mordaça contra a obra ficcional.  

Voltando aos múltiplos conceitos de literatura, em síntese, pode-se afirmar com segurança que literatura é a arte da palavra escrita na forma de conto, crônica, poesia, teatro e romance. Ela pode ser um dos reflexos, invertidos ou não, das múltiplas faces da sociedade. Nunca a pura realidade, pois personagens, enredo, tempo, espaço e linguagem são meras semelhanças, embora tudo seja fictício, isto é, inventado de tal forma que parece que é, mas não é. 

Assim concebida, tomamos como exemplo três obras de autores gaúchos: Incidente em Antares, de Érico Veríssimo; O Analista de Bagé, de L F Veríssimo; Contos Gauchescos e Lendas do Sul, de Simões Lopes Neto.  Antares não existe, muito menos seus sete mortos falantes e insepultos em protesto no coreto da praça; o heterodoxo e quixotesco Analista de Bagé é apenas uma caricatura do convencional método do joelhaço à solução dos problemas sexuais do gaúcho típico. Por sua vez, o velho e digno Blau Nunes é o narrador dos contos, lendas e mitos do tempo do gaúcho a cavalo. Retirá-los das bibliotecas e livrarias pelo fato de ter uma “linguagem imprópria”, deixando livros inacessíveis e os alunos impedidos ao direito à leitura. Seria um grande paradoxo à literatura e cultura sul-rio-grandense. Tenho certeza de que tais falsos moralistas não leram Bocage, Rubem Fonseca, Deonísio da Silva, Drummond, dentre tantos outros bons escritores.  A propósito, os deputados de MS que assinaram o documento para recolher o livro, assumem que não leram a obra. O Deputado Caravina assim se manifestou:  

Eu não li o livro, então não posso dizer sobre o livro. […] Tenho que discordar com os termos descritos. Sem polemizar, mas pelo nível das palavras colocadas ali para os alunos do ensino médio, não podemos estimular. Não é livro para ser disponibilizado pelo Ministério da Educação.

Revendo a história da censura aos livros e escritores brasileiros, pode-se tecer um rosário de mordaças estabelecidas contra livros e escritores no período do Estado Novo e da Ditadura Militar (1964-1984) com apoio da igreja sob alegação da defesa da pátria, da moral e dos bons costumes. Amparados por leis, foram criadas formas de mordaça contra autores e obras, traduzidas em exílio, tortura, prisão, caça às obras e autores.

Na era Vargas as vítimas da insanidade foram Monteiro Lobato e Graciliano Ramos. Na vigência da ditadura militar, sob a vigência do IA-5, foram proibidos no Brasil cerca de 500 filmes, 540 peças teatrais e duzentas obras literárias, dentre as quais, Eu sou uma lésbica, de Cassandra Rios; Laranja Mecânica, deAnthony Burgess; Roque Santeiro, de Dias Gomes; O Casamento, de Nelson Rodrigues; Feliz Ano Novo, de Rubem Fonseca.  Isso sem contar os autores como Salim Miguel, Ziraldo, Frei Betto, Renato Tapajós, Ignácio de Loyola Brandão, Joel Rufino dos Santos, Caio Fernando de Abreu, dentre tantos outros que foram calados pela força bruta da mordaça moralista. Também os poetas árcades da Inconfidência Mineira: Cláudio Manuel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga pagaram alto preço por terem se engajado na luta pela independência do Brasil contra o jugo do império português.

Também há que se lembrar o poeta barroco Gregório de Matos Guerra, o Boca do Inferno que, com sua poesia satírica e erótica, estabeleceu   críticas à sociedade baiana do período colonial:

Que falta nesta cidade?

Que mais por sua desonra…

Honra.

Falta mais que se lhe ponha…

Vergonha!

Voltando ao polêmico romance O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório, há que se dizer que a obra que retrata a vida de personagens que vivem à margem da sociedade. Aborda temas como identidade, pertencimento e racismo institucional. A história se passa na periferia de Porto Alegre e outros espaços marginais onde diversos personagens resilientes enfrentam e superam desafios de toda ordem.

A linguagem não é de língua culta padrão, chegando ao coloquial e vulgar, refletindo exatamente o espaço onde vivem as personagens que enfrentam múltiplas formas de violência social e familiar.

O jovem negro Raimundo é o protagonista da história. Ele batalha para sobreviver num ambiente extremamente hostil, buscando a dignidade humana num espaço social marcado pela violência e pelo racismo estrutural. O autor usa uma linguagem poética e crua para retratar a dura vida das personagens, mostrando coerência entre a linguagem e suas personagens. É assim que se expressam. Certamente é essa marca que impacta os analfabetos funcionais em leitura, pois acastelados em suas torres elitizadas de marfim e guiados por falsos moralistas, creem que seja a linguagem dos demônios.

Assim, desde que uma diretora de um colégio de Santa Cruz do Sul/RS, Janaína Venzon, publicou um vídeo criticando a obra O Avesso da Pele por conter “Vocabulários de baixo nível. Lamentável o Governo Federal através do MEC adquirir esta obra literária e enviar para as escolas com vocabulários de tão baixo nível para serem trabalhados com estudantes do ensino médio”.  

Tomada pelo poder da mordaça, a professora/diretora, no alto da torre de sua autoridade, escreveu na legenda do vídeo: “Solicito ao Ministério da Educação buscar os 200 exemplares enviados para a escola. Prezamos pela educação de nossos estudantes e não pela vulgaridade. Os professores da escola não “escolheu” nenhuma obra literária”. O vereador Rodrigo Rabuske fez coro à clarinetada moralista da diretora: “Absurdo o uso de O Avesso da Pele em escolas”!  

Em contrapartida, a editora Companhia das Letras divulgou uma nota na qual manifesta “indignação diante da repercussão do vídeo feito pela diretora da escola de Santa Cruz do Sul, que acusa o livro de conter palavras de baixo nível”. E complementa que “a retirada de exemplares de um livro, baseada numa interpretação distorcida e descontextualizada de trechos isolados, é um ato que viola os princípios fundamentais da educação e da democracia, empobrece o debate cultural e mina a capacidade dos estudantes de desenvolverem pensamento crítico e reflexivo”.

Pode-se deduzir que a Igreja fez a “mea culpa” abolindo o Index em 1966, dando-se conta do estrago que causou, queimando e proibindo milhares de livros em defesa da moralidade. Por sua vez, os militares, por força da Constituição, ao invés da censura nociva contra obras e escritores, passados os anos de mordaça aos livros, filmes, jornais e peças teatrais buscam cumprir suas missões em defesa das fronteiras e das riquezas naturais do Brasil.

Pena que ainda restam ilhas de falso moralismo contra obras ficcionais, tipo O Avesso da Pele, do jovem escritor Jeferson Tenório por parte de entes não-leitores, inclusive professores que avaliam a qualidade literária pelo nível de linguagem, ao invés de considerarem o contexto, o tema e a estrutura profunda que abordam. Os alunos da escola estão órfãs livro pela ação consciente do livro sequestrado. É uma escola em os professores não escolhem obras literárias, preferindo a escuridão.  Nela a censura é por conta da diretora e do vereador de cuecas e calcinhas borradas em pleno início do Terceiro Milênio.

A propósito, o poeta Mário Quintana já tinha alertado que “o pior analfabeto é aquele que sabe ler, mas não lê”, por força da falta de bibliotecas e de livros e por falta de gosto pela leitura.

Muitos estão sendo barrados e devolvidos pelos diretores de escolas com apoio de vereadores, prefeitos, secretários de educação e até governadores, tanto é que os Estados do Paraná, Goiás e Mato Grosso anunciaram a retirada do livro O Avesso da Pele das escolas sob o argumento de que o romance teria usado uma “linguagem imprópria”, repetindo as justificativas do ultrapassado e abolido Index.

Enfim, esqueçamos os novos arautos a favor da mordaça aos livros. Há que se incentivar o gosto pela leitura, estejam os livros onde estiverem: nas bibliotecas escolares, nas livrarias, nas estantes dos lares, nas sacolas, malas de livros, nos presentes de aniversário e em todos os lugares. O tiro já saiu pela culatra contra os falsos moralistas, posto que a procura de O Avesso da Pele cresceu mais de 1400% após seu recolhimento nas escolas.  

Não ao racismo estrutural, não aos genocídios e não às mordaças aplicada aos livros!

Autor: Eládio V. Weschenfelder. Também já publicou no site a crônica “Pretexto para falar de cavalos”: https://www.neipies.com/pretexto-para-falar-de-cavalos/

Edição: A. R.

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