A morte do Joaquim das letras vivas

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Quando é mesmo que vamos ler mais os vivos que os mortos?

Ele caminhava a passos lentos porque sempre tinha em mãos um bocado de livros. E falava baixinho, reclamava, sussurrava, como que para ele mesmo; bem! se ninguém o ouvia mesmo… e continuava, de porta em porta, em escolas e afins.

Carregava consigo livros, debaixo do braço e ia socando em todas elas.

_É preciso bater em muitas portas, porque elas se fecham automaticamente, resmungava.  Imagina que se, para estes meninos lerem, bate-se forte nestas entradas, mesmo que comprem alguns livros, o que pensar se não os comprassem?

Joaquim era de outros tempos, naqueles em que as caligrafias eram parecidas.

_Letras de taxistas, alguns brincavam.  Muito bem escritas, todas as palavras cursivas, apreciava-se ler. E era do tempo em que liam mesmo, todos.  Guimarães Rosa, Machado de Assis, Jorge Amado e tantos que os esquecia de falar.

_Ninguém se interessa por ler mais nada, brigava.  Até a Bíblia evitam.  E lendo-a, não entendem.  É uma geração de 300 palavras, quando muito, 500.  Não sabem o que falam, tudo se torna pobre e vulgar sob este céu de anil.

Pensava que depois dos 60, somente uma rabugice criativa poderia mantê-lo na ativa: falar o que se pensa, escrever o que inspira, andar com quem se quer e namorar; a quem surgir a sua frente.  Os anos aumentam e o funil das oportunidades se estreita. É o caminho apertado das partidas.

Aposentou-se Joaquim no mundo das vendas, e, sabe-se lá o que vendia.  Mas atravessou os anos apreensivo pois foi-lhe tirada a missão de ensinar.  Um sonho antigo e que o desanimou, quando, em sala de aula, uma professora amargurada, triste e acabrunhada, desceu críticas a sua letra.  E outra, que o reprovou porque faltava aulas demais, metido que estava na política.  E perdeu a disciplina.  No seu tempo não havia cadeiras em se aprovar e as ‘matérias’ eram mais simples.

E saindo das portas feias e malcuidadas da previdência, feliz com sua contribuição encerrada, falou: _ vou escrever.  O mundo vai me conhecer.  Vou começar pelas crianças, quem sabe as distraio e as tiro da letargia e da omissão de seus pais, igualmente estranhos aos livros.

Joaquim era um homem inconformado com a vida, insatisfeito desde o berço e escandalizado com as injustiças.  Muitas e muitas vezes prendera-se em seu pensamento, na ideia de mudar de país, fugir, acantonar-se em uma esquina do mundo e viver de contar histórias e estórias para os que ali passassem.

Um homem de rosto escanhoado, de raros sorrisos, sempre com roupas simples, pois simples era sua relação com o mundo. Sandálias, uma calça larga, um par de óculos embaçado e, volta e meia, uma gravata desmaiada.

Entretanto, complexa era sua intimidade com as letras, livros, ensaios, crônicas, artigos e tudo o que era escrito. Porque sua respiração dependia do que lia. Jornais, nos tempos em que os lia, todos os dias.  Agora, jamais.

E como via o mundo?  Uma soma de todas as ignorâncias, feito de pessoas vulgares, iletradas e incultas, semi-educadas, caminhando somente sobre as calçadas de seus desejos.  Exagerado este Joaquim!

Então, escrito e impresso seu primeiro livro, saiu à cata de leitores.  Uma história simples de amor, compaixão e amizade. Como tem de ser o amor.

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_Vai vender muito, falava baixo, quando sozinho pelas ruas de sua cidade. E ainda mais baixo, em salas de espera, recepções e audiências por reuniões que nunca resultaram em nada. Encontros e promessas de interesses vazios.

_Pois não, senhor? perguntou a secretária da diretora.  O que o senhor nos trouxe?

_ Trouxe uma pequena história, linda, onde fala do valor da amizade, das diferenças a serem superadas, por crianças e jovens, pela vitória do diálogo e do respeito e do amor possível, nas salas e pátios de escolas.

– Muito bonito disse ela.  Parece bom.  Alguém certamente vai gostar e comprar, o que não é meu caso.

_Mas as crianças adoram a história!  Insistia.

_As crianças adoram muitas coisas, mas como não sabem escolher, escolhemos por elas. É um perigo que cheguem a elas, contos e lendas que as desviam da verdade…e as tornam apáticas.

_Meu Deus, exclamou.  Fique com a posse da verdade porque eu vou ao outro lado da rua, ver a que outras mentiras hei de ouvir.

_Boa tarde senhor.  O que você quer realmente?

_Olha, como é uma escola religiosa, pensei que vocês poderiam comprar umas unidades deste livro; é amor e amizade em meio a natureza.  Fala de crianças, e até as árvores falam por elas. Há harmonia e a vida é leve e equilibrada.

_Muito bonita a sua capa.  Parece muito bom.  Olha, vai vender sim.  Alguém vai se interessar, o que não é o nosso caso.

Saiu o Joaquim com a sua caixa debaixo do braço.  Atravessou a rua e retornou à secretária da diretora.

_ Senhora.  Vamos fazer o seguinte? Eu dou os livros de graça, tome-os!  O importante é que seus alunos os leiam.  A caixa está pesada, não vou conseguir andar muito com ela.

_Aos alunos, a esperança de um anil melhor, murmurava.

E assim ficaram seus livros em um canto da sala, aguardando por mais poeira sobre seus ombros, como os demais ali estavam, imagina-se lá por quanto tempo.  Um pequeno cemitério em sua sala, dissolvendo em vida muitas palavras a contemplar.

Na semana seguinte, retorna o seu Joaquim.  Com ar de professor, andava com a coluna firme e os ombros rijos, imitando uma autoestima ausente.  A segurança que se vê, em almas desnudas e ocultas. Caminhava pela calçada, em suas pernas de ferro e barro. Qualquer tropeço, todavia, esborralhava.

_Bom dia Secretária, posso falar com a diretora?  É da educação né?  Sabe o que é; tive uma ideia. E eis que ela aparece sem querer.

_Pois não?

_Sra. Escrevi um livro em que as crianças adoram.

_Há, já vi seu livro, lindo.  Vai vender muito, mas tem que ter bastante apetite.  Alguém vai gostar muito, vai comprar, o que não é nosso caso.

Desceu o bom Joaquim escada abaixo e assim que chegou à calçada, sentou-se à moda dos índios e devorou o seu livro; página por página.  Começou pelos agradecimentos…e subiu, comeu o prefácio e assim que rasgava as páginas enchia sua boca. A contracapa foi a última a ser devorada. E voltou.

_ Sra diretora.

Foi direto.

_Veja só. Desci a escadaria junto à rua e comi todas as páginas.  A sua ideia foi excelente. Você acredita que é muito saboroso?  Mas comece pela conclusão e vai voltando aos poucos.  Pense em uma alface saborosa! Quer provar?

Não obrigado.  Já almocei.  O seu livro tem sabor, com certeza vai vender.  Alguém vai gostar, o que não é meu caso.

Joaquim desceu novamente e foi até o seu velho carro, de joelhos.  Pegou mais livros e veio trazendo-os à cabeça, equilibrando 100 deles.  E nenhum caiu. Mas ele sim, e bateu seu nariz em um poste. E sangrou.

Subiu de joelhos 54 degraus e entrou na sala da diretoria, onde se decide o futuro da educação.

-Sra. Diretora, veja!  Os livros têm leveza e harmonia.  Não caem, nem desalinham.  Quer tentar?  Quem sabe você compra apenas alguns e eu mesmo os levo, de joelhos, a todas as escolas.  Tudo vale a pena se a alma não desdenha, ouvi de alguém, algo assim.

Ele de joelhos, sangrando sobre os livros, era a paisagem de um amor incondicional pelo saber. E do desprezo, igualmente, em sua proporção direta.

_Obrigado Sr.  Já percebi que os livros têm magnetismo e parecem que se abraçam, uns aos outros.  Alguém vai comprar muito e vai se interessar, o que não é meu caso.

Então Joaquim saiu e caminhou até a praça próxima. 

 _Quem os lerá? O ferro velho? E então se avizinha o perigo; em se tratando de conselhos e precipícios, sempre tem alguém que acha que o fundo não é o bastante.

Ouvindo atentamente a sua história, logo veio a proposta desonrosa, de quem passou a madrugada com a testa de fora. Um mendigo invisível, errante pela praça principal, cheio de ideias escondidas.

_Por que você não os queima todos?

-Olha, respondeu o infeliz escritor, que ideia!

_Sim, você foi a escolas, livrarias, empresas, e agora, justo na Educação…queime todos. Não há mais leitores. Sequer os professores os lerão, falou o metafísico ambulante das pingas e das valetas.

Correu Joaquim no seu velho carro e apanhou todas as caixas.  Empilhando uma a uma, fez como que uma torre de livros, a Babel da degradação linguística, sob uma linda árvore. Galhada, de um verde intenso e folhas pontiagudas. Depois, soube-se que estava em extinção, rejeitada a coitada.  Antes de ir, assistiu sob seus pés a tragédia de um leitor, agora escritor, carcomido pela desilusão de suas páginas não lidas e desprezadas.

E chamou mais mendigos, pedintes, gente desgraçada pelas praças da cidade, todos, em um ajuntamento da miséria humana e sua cultura; o público certo junto à neblina que não nunca parou de baixar na mente coletiva: a indiferença.

E riscou o fósforo!

E as chamas subiram. Ao conselheiro das sarjetas tentou falar, mas nada se ouvia. A mendicância ria, feliz com seu epílogo.  Mas a árvore não aceitava o desacato.  De suas folhas começaram a escorrer uma seiva branca tentando apagar o fogo. Em vão.  As letras de seus livros começaram a pular e corriam desesperadas pela grama e sumiam. Muitas morreram e algumas frases, perderam-se para sempre.

As palavras, começando pelas maiores, desesperadas, saltavam pelo meio fio, em busca de água. Tropeçavam entre si em um emaranhado de termos incompreensíveis e sem sentido, clamando por ajuda, como velhos livros abandonados por seus leitores, lamentando por noites a fio em bibliotecas esquecidas.

E o inesperado aconteceu; Joaquim vendo seus livros ficarem sem letras atirou-se ao fogo como que querendo juntá-las todas.  E foi indo aos poucos, aos olhos dos seus futuros leitores; os invisíveis deste mundo. Derreteu a vida de quem sonhava ensinar. Nem queria muito, ele. Quis ele salvar suas palavras, mas perdeu-se em vida. Morreu abraçado aos livros, agora sem impressão alguma. O vazio e o nada.

O tempo passou e a árvore também não quis viver.  Nada nasceu no seu espaço. Sua história, soube-se depois, também fora contada em livro por Joaquim.  Mas ninguém soubera.  Claro, ninguém a lia…

Como é comum entre as pessoas, sentirem prazer na ignomínia alheia, falava-se do louco Joaquim, onde seus livros o tragaram para a morte.

Passados alguns anos, soube-se também, a diretora enforcou-se na sua biblioteca.  Subiu sobre uma pilha de contos infantis e chutou os últimos. Sua assistente enlouqueceu, parece, porque em uma tarde, no banco da mesma praça, distraída, via uma multidão de letras soltas, correndo aos seus pés, por entre as gramas, como querendo juntar-se umas às outras. Ficaram conhecidas como as letras viúvas do seu Joaquim. Caminha em um sanatório, recitando em voz alta o livro rejeitado.

O ele vendeu horrores! E o mendigo metafísico das madrugadas mal dormidas, tornou-se um grande livreiro. Pensava muitas vezes em começar a escrever.

O céu é de anil, por aqui, mas no ar sente-se o odor da ignorância.

Morrendo o bom Joaquim, salvou seus livros. E cumpriu-se as escrituras; “assim como o homem imagina em sua alma, assim ele é”.

É que ele sempre falava:  _morro pelos livros!

Todo o cuidado com o que se pensa, portanto.

Quando é mesmo que vamos ler mais os vivos que os mortos?

Referências:

1.Parte do diálogo de Joaquim com a Secretária, foi inspirado no diálogo de uma filha com sua mãe, no livro de Judith Viorst, Perdas Necessárias.

2. O versículo citado é Provérios, 23:7

Autor: Nelceu A. Zanatta. Também publicou no site a crônica “Há cinquenta países que leem mais do que nós: o que nos atrasa?”: https://www.neipies.com/ha-cinquenta-paises-que-leem-mais-do-que-nos-o-que-nos-atrasa/

Edição: A. R.

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