BNCC explicita dois aspectos importantes e interligados que são o reconhecimento das alteridades e o respeito a diversidade cultural e religiosa que configura a relação com o sagrado no Brasil.
O Ensino Religioso na educação brasileira passou por significativas mudanças teórico-metodológicas ao longo das últimas quatro décadas. A transformação mais significativa veio com a BNCC (Base Nacional Comum Curricular) que referendou o Ensino Religioso como área do conhecimento e, ao mesmo tempo, sistematizou-o como um componente curricular.
Com o status de área, o Ensino Religioso tem definido como objeto o conhecimento religioso produzido pelas áreas das ciências humanas e sociais, principalmente as Ciências da Religião que se ocupa em investigar os fenômenos religiosos que se manifestam em todas as culturas e povos. Assim, o Ensino Religioso migra de uma concepção catequética/confessional para uma configuração de unidade plural, como um componente que se detém em estudar os aspectos comuns a todas as tradições religiosas, a saber, os símbolos, os ritos, os mitos, as crenças, os textos, os princípios éticos e outros.
Pela primeira vez está posta uma base curricular comum para o Ensino Religioso em qualquer escola do nosso país, uma espinha dorsal composta por unidades temáticas e objetos de conhecimento que ajudam a desenvolver habilidades e competências específicas nas crianças e nos jovens.
Essa mudança proposta na BNCC para o Ensino Religioso tem um grande impacto nas metodologias, nas práticas pedagógicas, no planejamento anual, no plano de aula, nos projetos, na formação de professores. Algumas reflexões, conexões e possibilidades.
Reconhecimento das alteridades e respeito a diversidade
Ao colocar as diretrizes para o Ensino Religioso, a BNCC explicita dois aspectos importantes e interligados que são o reconhecimento das alteridades e o respeito a diversidade cultural e religiosa que configura a relação com o sagrado no Brasil. Nosso país é um verdadeiro mosaico composto por uma diversidade de tradições religiosas e filosofias de vida. Uma cultura mesclada e marcada pelas crenças de povos originários e pela fé religiosa dos imigrantes que aqui se fixaram.
Nesse contexto, o Ensino Religioso assume o papel de ser instrumento na educação de crianças e jovens para o conhecimento e a vivência da “ética da alteridade” cujos princípios norteiam a convivência acolhedora e dialógica com pessoas que cultivam ideias, visões de mundo e crenças diferentes.
Ao contrário do que muitos pensam, reconhecer as alteridades e respeitar a diversidade existente na sociedade é uma atitude que contribui para valorizar e aprofundar a própria identidade. Hans Kung, teólogo suíço, deixa claro em seus escritos que abrir os ouvidos e os corações para conhecer a diversidade de experiências espirituais e tradições religiosas não exclui o conhecimento e o envolvimento com a própria religião, suas crenças ou sua filosofia de vida.
Aquele que tem como propósito dialogar e entrar em comunhão com os outros sem conhecer suas próprias convicções e crenças, com seus limites e possibilidades, constrói mais muros do que pontes, aumenta mais a distância entre as pessoas do que as aproxima.
Conhecer-se com profundidade é o princípio fundamental para o conhecimento dos outros. Quem não se conhece e não tem clareza de seus limites e de suas convicções e crenças, assenta sua vida nas incertezas e inseguranças e assim é movido pelo medo de abrir-se aos outros nas suas diferenças. A identidade não exclui a alteridade e vice-versa. Elas se complementam.
Uma perspectiva interdisciplinar
Assim como não há espaço para fechar-se numa identidade, o Ensino Religioso não pode isolar-se de outras áreas do conhecimento, mas, tendo clareza de seu fundamento, de seu objeto, de sua epistemologia e de seu escopo, precisa abrir-se ao diálogo e à comunhão com outros saberes, práticas pedagógicas e componentes curriculares com a consciência de que nenhum saber por si só é suficiente para apreender a realidade que o ser humano busca compreender.
Assim sendo, um Ensino Religioso que pretende formar pessoas em todas as suas dimensões, deve propiciar um processo de ensino e aprendizagem interdisciplinar, sabendo que o sagrado está presente na natureza, na música, na dança, na literatura, na história, no tempo, no espaço, enfim em tudo o que nasce da razão, da intuição, do encantamento com a riqueza da vida, do indizível que de alguma maneira se concretiza na obra humana. Assim torna-se possível dar mais profundidade e sentido ao conhecimento religioso que, conectado com outras áreas e saberes, possibilitará a formação integral de crianças e jovens nas escolas do Brasil.
O Ensino Religioso e sua interrelação com os ODS
Na mesma linha da interdisciplinaridade, está a importante conexão do Ensino Religioso com iniciativas e projetos propostos por pessoas, países, instituições e organismos locais e globais. Uma dessas iniciativas são os “Objetivos de Desenvolvimento Sustentável” (ODS) da Agenda 2030, da ONU. Alguns desses objetivos podem ser trabalhados numa interrelação com os objetos de conhecimento, habilidades e competências no Ensino Religioso.
Como proposto na BNCC, o Ensino Religioso oferece aos estudantes a possibilidade de refletir sobre temas atuais e agir como pessoas e cidadãos para a transformação das realidades sociais, econômicas, políticas e ambientais, tais como os explicitados nos seguintes ODS:
“Objetivo 1. Acabar com a pobreza em todas as suas formas, em todos os lugares; (…) Objetivo 3. Assegurar uma vida saudável e promover o bem-estar para todos, em todas as idades; Objetivo 4. Assegurar a educação inclusiva e equitativa e de qualidade, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos; (…) Objetivo 11. Tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis; (…) Objetivo 15. Proteger, recuperar e promover o uso sustentável dos ecossistemas terrestres, gerir de forma sustentável as florestas, combater a desertificação, deter e reverter a degradação da terra e deter a perda de biodiversidade; Objetivo 16. Promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis.(…)”.
Ensino Religioso e Pacto Educativo Global
Assim como as ODS, o Ensino Religioso proposto e sistematizado na BNCC, pode contribuir com o Pacto Educativo Global, proposto pelo Papa Francisco em 2020.
Tanto um quanto outro têm como objetivo formar e convocar pessoas, tradições religiosas e instituições educativas a se unirem num compromisso pelo desenvolvimento integral de crianças e jovens para que se engajem no projeto de construção de um novo mundo cujos principais fundamentos são: o serviço gratuito e desinteressado às pessoas, principalmente as mais vulneráveis como os pobres, as crianças e os idosos que estão imersos na cultura do descarte da sociedade atual; o cuidado e responsabilidade com o meio ambiente e toda a sua biodiversidade através de atitudes simples e sustentáveis; o desenvolvimento de uma cultura do encontro, do diálogo e da convivência harmoniosa com os outros; a adoção de gestos mais humanos, inclusivos, fraternos, justos e pacíficos; o discernimento diante das possibilidades e dos desafios que a internet e as relações virtuais apresentam às novas gerações; a atenção e o cultivo da interioridade nas crianças e nos jovens para que possam parar, silenciar, refletir, ouvir, escutar-se e “sentir” a transcendência; o desejo e a esperança das crianças e dos jovens de que o mundo pode mudar para melhor através de uma revolução da ternura que destrua a globalização da indiferença, da discriminação, do preconceito e da intolerância religiosa.
Autor: Renan Nascimento
Licenciado em Filosofia pela Fundação Educacional de Brusque (1995) e em Pedagogia pela Faculdade Claretiano (2016); bacharel em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2001), pós-graduado em Psicopedagogia pela Universidade Estadual de Minas Gerais (1997) e em Ensino Religioso pela Universidade Católica de Brasília (2008); músico; leitor técnico e elaborador de conteúdo para livros didáticos; orientador educacional e coordenador da área de Ensino Religioso do Colégio São Luís, em São Paulo, desde 2002.
FONTE: https://www.saoluis.org/2021/11/08/a-nova-face-do-ensino-religioso-nas-escolas/