Escrever aos que nada tem e ainda mais, aos que perderam o que tinham, é como abandonar nossas referências, que nos remetem quase que somente a posses. É sobre encontrar parentes distantes, que visitam no Natal para apresentar seus bens, conquistas, compras, viagens. E a eles nada ter a dizer ou mostrar, apenas ouvir, pensar, aborrecer.
Há uma frase enigmática de Álvaro de Campos: “E a luxúria única, de quem já não tem esperanças?”
Depois, Rubem Alves a parafraseia, dizendo: “não ter esperança é estar em paz, não ter causas por que lutar, o fim do esforço… Viver o presente, o presente apenas, como se o futuro já não se anunciasse, como se fosse inútil saber o que ele anuncia.”
Por isso resolvi dedicar este tempo e escrever aos que não tem nada neste Natal. É a contramão da contramão, é não querer estar em um mundo de fugitivos, andando na direção contrária e sempre parecendo estar fugindo (T.S.Eliot).
Escrever aos que nada tem e ainda mais, aos que perderam o que tinham, é como abandonar nossas referências, que nos remetem quase que somente a posses. É sobre encontrar parentes distantes, que visitam no Natal para apresentar seus bens, conquistas, compras, viagens. E a eles nada ter a dizer ou mostrar, apenas ouvir, pensar, aborrecer.
Então escrevo a você, que nada tem a apresentar aos seus, ou que tem até menos do que acumulava em janeiro. Será uma conversa inócua, em sua família, sem nada a se orgulhar, nada a contrapor. E nada acumulado, nada comprado, nada entesourado. Nada investido, igualmente, nenhuma viagem planejada, nem reformas em casa, troca de carro, sem troca de nada.
Será uma visita curta neste feriado, neste Natal, uma fala protocolar, pois nada há para ser exibido. Talvez contas, atrasos, pendências, juros de todos os pesos a pagar e um calendário cruel, ameaçador, que nos observa o mês inteiro, avisando que que nada se pode gastar, além do dia 5. Mas o Natal é 25. Mas quem irá ouvi-lo?
Por outro lado, este pode ser um tempo de salvação. Uma possibilidade única ao se apresentar a quem faz aniversário, de fato, e uma oportunidade para rezar. Que tal a sugestão abaixo?
_ não tenho bens para agradecer meu Senhor, nem terras ou casas. Meu saldo é nenhum. Mas hoje estou ao seu lado e aqui será meu lugar.
Tenho carências, de todos os tipos, em preces não atendidas, em uma fé despedaçada, em doenças que se acumulam, em filhos que exigem, vizinhos que ostentam muitas coisas, anúncios que me tentam e que não quero tê-los, convites para comprar e comprar, e ser feliz comprando.
Portanto, perdoa meu caro Senhor, se hoje, no seu dia, não o agradeço por bens. Nada trago a sua mesa. Agradeço por respirar. Tenho tempo, muito tempo para ouvi-lo, parabenizá-lo, contemplá-lo. Mas nada em mim prosperou este ano, e no banquete que se forma logo mais, até a gratidão desvanece.
Neste dia, apresento a minha vida pelo seu nascer e pela sua cruz. Ela deveria ser minha, pelo menos em parte, e o seu peso, marcar meu caminho. Mas você a tomou para si. Nada mais importa. Preciso dividir sua dor e suas lágrimas, para que sua carga seja menor. Não estava lá, nem aqui estou. Vivo na passagem dos que dizem segui-lo, mas não o seguem por inteiro. De suas palavras no calvário, permanecem somente as que lhes são suaves. Porque nada me é dividido e a ninguém divido, igualmente. Em seu clamor e dor intensa, em seu abandono, Senhor, ficamos todos aqui, de costas ao seu nascimento e morte e em frente à festa do que nos é conveniente brindar.
Exatamente como o fizeram todos os que o seguiam, pois assim não foi mais dividido e, a cruz baixada, ninguém o acudiu.
Logo será meia-noite, fogos e brindes, em alegrias a que não fui convidado. Nem você. Nem o seríamos, uma vez que não há nada para levar ou comer e o que estava reservado a mim e aos meus, para o dia, esgotou-se pela manhã.
Será a ceia dos ausentes, dos invisíveis deste tempo, dos que se sentam à mesa apenas para rezar e contar as horas.
Vivo agora, o conforto dos que nada esperam. Fique em paz meu Jesus, hoje nada vou pedir, nada quero receber. Neste dia, onde haveremos de lembrar sua vinda, hoje, tudo importa. Amanhã, os presentes não devolvidos, retornarão aos seus armários.
Permita seguir os seus passos, então, pois sabemos que os que nada tem, sempre serão aceitos. E luto comigo mesmo para que neste vazio em possuir agora, jamais me abrace a esperança. Como em seus últimos dias. Deixe-me segui-lo para qualquer lugar, e ter o pão de hoje, somente, como nos ensinou, e em troca nos dê a paz profunda dos que anseiam pela insignificância. Viver como o Senhor viveu, este será o meu propósito de vida. Não ter nada, ser tudo!
E ao encerrar a sua oração, como aqueles sem paladar, nem sede a saciar, livre de desejos, repousará em sua alma a paz dos que não carecem. Apenas seu Deus!
Então, eis o espírito de Natal.
Mas e a esperança?
_ Meu caro leitor, sempre haverá, se entender que, sim, há um propósito em nada possuir, uma essência inexplicável, que aproxima criatura e criador. E nessa ausência de tudo, em meio ao deserto, vê-se uma partícula de esperança, um retalho de luz, que sempre esteve ao seu alcance. A escassez, nunca foi e nem o será para sempre. Percebendo-se filhos de Deus, somos condenados à espera de sua fonte de riquezas.
Não esqueça, que para além dos 40 dias no deserto, após sua solidão e tentação, jesus foi servido pelos anjos. Daí que o seu deserto pessoal, hoje, não é definitivo. E o seu caminhar nesta hora, neste vale estéril, tornará seu desejo mais forte. Na solidão do ano, em todas as suas perdas, em sua cesta vazia ao fim de cada mês… O futuro sombrio e distante, a se perder de vista, não é e nem será eterno.
Atravesse o deserto!
Sobretudo, se ele se formou a pouco! Pense um segundo nos que já nasceram nele e que, em sua rafa, nunca saíram desde a infância. São os nômades da esperança, sempre, e que habitam as periferias, as baixadas, o que restou, e onde a beleza da vida em toda a sua abundância os abandonou.
Creia, você nunca esteve só!
Mas caso desistir, e não agarrar o fiapo de esperança que lhe será entregue nesta noite, assim como a maioria dos que rejeitam seus fardos desistiu, tome alento, e aproveite mais um Natal sem sentido. E o faça bebendo as gotas que borbulham em sua garrafa, juntamente com o seu vazio.
Feliz natal, se for o caso.
Referência:
Querida Marina… (Rubem Alves. Folha de S. Paulo, 13 de out de 2009)
Autor: Nelceu A. Zanatta. Também escreveu “Um novo Natal para pensar”: https://www.neipies.com/um-novo-natal-para-pensar/
Edição: A. R.
Ótima reflexão não só para o natal. O dia-a-dia dos que nada tem, são lembretes diários para que possamos refletir o ano inteiro.