Nesse momento do mundo infestado pela pandemia,
ressurge o cenário da peste, em todos os aspectos.
Deparamo-nos com os “ratos” entrando sutilmente
em nossas casas, perturbando nossa vida,
tirando nossos direitos e impossibilitando
nossa emancipação.
Albert Camus nos inspira, sempre atual. Escreveu (1947) um romance A Peste, em que descreve Oran, uma cidade da Argélia, invadida por ratos. Seus habitantes se tornam vítimas de uma epidemia.
Aparecem personagens solidários, descrentes, irônicos, debochados, enfim tudo
aquilo que se situa na subjetividade, como representação do humano. No quadro
devastador da peste, os personagens da tragédia se mostram em suas lutas, em
suas conquistas, em suas fraquezas, em suas paixões, em suas revoltas.
A contingência humana vivida em uma cidade invadida por ratos estabelece os limites das reações, que se movimentam entre o desespero e a comicidade, a embriaguez e a lucidez.
Ao descrever a cidade-cenário, Camus arbitra sobre os sentimentos de espanto e
de indiferença, que percorrem o imaginário dos sujeitos, convivendo em uma
cidade assolada pela peste. A descrição assume cânones de investigação e de
estranheza. Os atos do cotidiano, as datas e os dias que seguem demarcam a
cartografia de uma situação absurda.
A dimensão do entendimento dos que sofrem só pode ser medida na aproximação da
vida, em sua concretude e na tessitura de suas significações. Personagens como
o médico e o jornalista ocupam lugares diferentes e se comportam a partir de
seus valores.
Em Camus, é extremamente acentuada a questão do compromisso do sujeito consigo
mesmo e com os outros. Há uma solidariedade que se constrói na aventura humana,
estabelecendo laços de convivência.
Esse panorama camusiano aparece diante
de nós com uma transparência meridiana sobre o que estamos vivendo atualmente,
nessa contingência da pandemia do Coronavírus. Encontramos nos fatos e nos
relatos a similaridade da tragédia descrita pelo escritor.
Temos, de um lado, um certo sentimento de indiferença diante da primeira
notícia acerca do vírus, em dezembro de 2019. Chutamos a notícia, tal como foi
chutado o primeiro rato que apareceu num prédio. O morador achou estranho e o
porteiro ficou escandalizado.
Tivemos a mesma atitude. Não nos atingirá, estamos muito longe da China e não temos os mesmos costumes e hábitos culturais daquele povo. Eram as reações preconceituosas ou impulsivas. De outro lado, nos deparamos com a irresponsabilidade de algumas autoridades que não levaram a sério o problema da pandemia. Entenderam (?) que se tratava de uma histeria coletiva, não própria das pessoas inteligentes. Que se resguardem os interesses econômicos, que o mais virá por acréscimo.
E agora?! Tocamos na tela do mundo e o que vemos?! Crescimento da “peste”,
mortos que se avolumam, sistemas de saúde entrando em colapso e determinando
quem deve viver e quem terá que morrer. Eis a perplexidade diante do
imponderável!!
Ainda bem que, tal como no romance de Camus, temos pessoas envolvidas com a
Ciência, com a disciplina, com a determinação e a lucidez para nos orientarem
sobre como viver e conviver em tempos de dor e de morte. Os “ratos” que invadem
o mundo, hoje, são outros, mas igualmente provocam doenças, mortes e atitudes
discricionárias.
A lógica da peste é verdadeira. Temos aqui e agora, tal como entre os personagens da narrativa, o flagelo real, embora pensemos, tal como Camus, que nem a desgraça é eterna. Temos uma certeza, que é o cumprimento da tarefa diária de cuidado com a gente mesma e com os outros. Estamos intimados a sermos sérios, responsáveis e solidários.
Por que essa narrativa nos possibilita a reflexão sobre uma forma de excluir os
mais pobres, os mais frágeis, os mais despossuídos? Porque presenciamos uma
espécie de exílio, uma realidade de exclusão entre os que têm e os que não têm
condições de enfrentar a Peste.
Nesse momento do mundo infestado pela pandemia, ressurge o cenário da peste, em
todos os aspectos. Deparamo-nos com os “ratos” entrando sutilmente em nossas casas,
perturbando nossa vida, tirando nossos direitos e impossibilitando nossa
emancipação.
A peste exige que lutemos com dignidade, sem abrir mão da honradez e sem
compactuar com a violência. Tal como um dos personagens do romance, queremos produzir
esperança entre todos, que estão na cidade invadida pelos ratos. Que na mesa
dos excluídos também a alegria seja servida, pois a Justiça será sempre o
fundamento da vida feliz.