A promessa de felicidade na modernidade líquida

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Certamente, um dos grandes fatores que mobiliza e seduz os insaciáveis consumidores na sociedade de consumo é a promessa de felicidade. Não precisamos fazer grandes esforços, nem sequer recorrer a um olhar teórico sobre o assunto para constatar tais evidências.

Se prestarmos atenção aos comerciais que diariamente circulam pela televisão ou por outras formas de propaganda, de forma fácil perceberemos esse apelo constante que vem de diversas formas: “a felicidade mora aqui”, “está esperando o quê para ser feliz”, “deixe feliz a quem você ama”, “para que este Natal seja repleto de felicidade”. São apenas alguns exemplos dos slogans constantes que invadem nossas casas todos os dias.

A felicidade é comprada a crédito e a satisfação dos desejos tem de ser imediata, mesmo que isso custe “suaves” prestações que levam até quatro a cinco anos para pagar. Como diz Bauman (2000, p. 55), a sociedade de consumo “é uma comunidade de cartões de crédito, […] uma sociedade do ‘hoje e agora’; uma sociedade que deseja, não uma sociedade que espera”. Por isso não se necessita de “normas reguladoras” que impõe limite aos desejos, ou que disciplinem o compulsivo anseio de comprar.

A sedução torna-se a grande estratégia que os afortunados diretores de marketing bem remunerados que expõe “as maravilhas não experimentadas” e “as promessas de sensações desconhecidas”. Por isso, os consumidores devem estar pautados pela “estética do consumo” e não pela “ética do trabalho” e “o consumo, sempre mais variado e rico, aparece ante aos consumidores como um direito para desfrutar e não uma obrigação para cumprir”.

A estética torna-se o elemento agregador na sociedade de consumidores. A estética bonifica as mais “intensas experiências” que podem ser desfrutadas a cada ida ao shopping, pois esperar para desfrutar algo significa “perda de oportunidade”. Viver uma experiência estética não requer preparação e nem justificativa, pois chega sem anunciar-se e desaparece de forma rápida. Por isso tem de ser desfrutada no “presente fugaz”, onde “cada momento é bom para que se desfrute”.

Adverte Bauman (2000, p. 56) “não cabe ao consumidor decidir quando surgirá uma oportunidade para viver uma experiência alucinante; o consumidor deve estar sempre disposto a abrir a porta e recebê-la”. Por isso o alerta constante, a prontidão para reconhecer a oportunidade e a disposição para fazer tudo que for preciso para aproveitá-la da melhor maneira possível. Não existem receitas infalíveis, nem cálculos matemáticos, para mover-se no “universo das oportunidades”: a bússola para nos movermos não é nem cognitiva, nem moral. Este é o “segredo” e a promessa de felicidade na sociedade do consumo.

O trabalho não desaparece na “sociedade de consumo”. No entanto, sua função e seu status se modificam completamente. Ele perde seu “lugar de privilégio” e sua “condição de ser o eixo” estruturador da ordem social e da construção da identidade dos sujeitos. Com isso deixa de ser uma referência ética e passa a ser apreciado pela avaliação estética, ou seja, o trabalho passa a ser julgado pela “sua capacidade de gerar experiências prazerosas” (Bauman, 2000, p. 57). A partir desse critério são avaliadas as profissões e as formas de trabalho: algumas profissões são fascinantes e refinadas, pois são capazes de “brindar experiências estéticas”; outras são enfadonhas e somente asseguram a sobrevivência. Da mesma forma que ocorre na relação com as mercadorias, a possibilidade de escolha é o critério que demarca quando uma profissão ou trabalho são fascinantes ou enfadonhos. Aos que não são afortunados, com a estética do consumo e nem com a satisfação do trabalho, sobra as “amarguras” deste.

O trabalho pautado pela “estética do consumo” deixa de ser um dever moral e se transforma em um poderoso fator de estratificação social.

Para os afortunados das “profissões fascinantes” não existe mais uma linha divisória entre “trabalho e hobby”, entre as “tarefas produtivas e as atividades de recreação”, pois o próprio trabalho é elevado a “categoria de entretenimento supremo e mais satisfatório que qualquer outra atividade”. Os afortunados se jogam no trabalho 24 horas por dias, os 7 dias da semana, com a “doce e suave sensação” de escolheram viver a vida dessa forma, intensamente. Não se sentem escravos do trabalho; ao contrário, se sentem que fazem parte de uma elite de afortunados e exitosos consumidores. Como diz Bauman (2000, p. 58): “um trabalho como entretenimento é o privilégio mais invejado. E os afortunados que o tem se lançam de cabeça às oportunidades de sensações fortes e experiências emocionantes oferecidas por esses trabalhos”.

E o que significa ser pobre numa sociedade de consumo? Como fica a condição de felicidade na estética do consumo?

Na leitura de Bauman (2000, p. 64), a pobreza não se resume a falta de comodidade e ao sofrimento físico; ela é acima de tudo uma condição social e psicológica, ser pobre nessa condição significa estar excluído do que se considera uma vida normal, o que gera sentimento de vergonha ou culpa. A pobreza implica um fechar de portas de uma vida feliz por não usufruir das oportunidades que a vida oferece.

Na estética do consumo, como ressalta Bauman (2000, p. 64), uma vida feliz é aquela em que todas as oportunidades se aproveitam. Nessa definição, os pobres não têm uma vida normal e, portanto, não podem ter uma existência feliz, pois são consumidores defeituosos ou frustrados, consumidores imperfeitos, deficientes e incapazes de adaptar-se ao nosso mundo. Essa incapacidade e deficiência causam uma profunda degradação social e um exílio interno, que se converte em ressentimento provocado pela exclusão do banquete social no paraíso da estética do consumo. Se a felicidade é fazer parte do afortunado grupo que pode consumir e escolher diante de tanta abundância ofertada pelo mercado, então os pobres dificilmente poderão ter acesso à felicidade.

 Em estudos realizados na Inglaterra nos anos de 1980, com o objetivo de compreender os modo de vida dos trabalhadores, ao analisar sobre os efeitos psicossociais do desemprego, revelaram que os termos “aborrecimento” e “frustração” foram as palavras mais frequentemente utilizadas pelos entrevistados. A vida na estética do consumo se propõe erradicar o aborrecimento, pois promete uma vida de excitação contínua, renovada que se dá na possibilidade de obter algo novo, inédito, desde que se tenha dinheiro para pagar.

Se há quase um século Sigmund Freud anunciava que a felicidade não existe como estado, que somente somos felizes por momentos e que logo nos aborrecemos, a estética do consumo, estrategicamente e engenhosamente criou uma sistemática em que “os desejos surgem mais rapidamente que o tempo que leva para saciá-los, e que os objetos de desejo são substituídos com mais velocidade do que se tarda em acostumar-se e aborrecer-se com eles” (Bauman, 2000, p. 66). Na estética do consumo não há espaços e chances para o aborrecimento, esta é a regra.

No entanto, para entrar nessa sistemática é necessário dinheiro, pois é ele que possibilita alcançar o “estado de felicidade”. Como diz Bauman (2000, p.66) “desejar é grátis; porém, para desejar de forma realista e deste modo sentir o desejo como um estado prazeroso, há que ter recursos. O seguro de saúde não dá remédios contra o aborrecimento”. Ter dinheiro é adquirir o “ingresso” para se fazer presente no lugar onde é possível afastar o fantasma do “aborrecimento”, lugar onde os desejos são permanentemente renovados, realimentados e potencializados.

Na estética do consumo aos pobres é reservada a condição de serem subservientes a um estigma de consumidor defeituoso e por isso sua função é esfregar pisos, cuidar dos jardins dos afortunados e prestar-se aos trabalhos mais básicos com a ilusão de que talvez um dia possam ter dinheiro suficiente para usufruir do paraíso do consumo.

Na estética do consumo “os ricos se transformam em objeto de adoração universal” (Bauman, 2000, p. 68). Se na ética do trabalho os ricos se colocavam como modelos de heróis, “homens que haviam triunfado por seu próprio esforço”, agora a riqueza se torna objeto de veneração, pois é ela que possibilita o estilo de vida extravagante oferecido pelo paraíso do consumo. Os ricos são idolatrados, pois possuem uma extraordinária capacidade de escolha da forma de vida e mudá-la se for necessário.

Na avaliação de Bauman (2000, p. 68), o crescimento econômico no cenário da estética do consumo, significa substituição de postos de trabalho por “mão de obra flexível”, a substituição da segurança laboral pelos “contratos renováveis”, empregos temporários e contratações ocasionais. O próprio Bauman (2000, p. 68-69) denuncia essa dura e agressiva realidade quando constata que a Grã Bretanha posterior à era Thatcher, aclamada como o êxito econômico mais assombroso do mundo ocidental, se tornou também o país que ostenta a pobreza mais agressiva entre as nações ricas do planeta. Nesse cenário “quanto mais pobres são os pobres, mais altos e caprichosos são os modelos colocados frente aos seus olhos: há que adorá-los, invejá-los aspirar a imitá-los”.

Uma das possibilidades de saída alternativa para aqueles pobres que almejam sonhar ou ter parte das “migalhas” da estética do consumo é hipotecar sua própria vida através da “vida a crédito”. Neste cenário, não somente a felicidade está à mercê do consumismo, o amor, bem como, os relacionamentos, estão sendo cada vez mais voláteis e fugazes, são tão líquidos que são difíceis de durar.

Para os que tiverem interesse em aprofundar esse debate do consumismo, além das referências do Sociólogo Zigmunt Bauman, indico o capítulo “A Fragilidade dos laços humanos e a felicidade efêmera na sociedade de consumo: implicações formativas” (Fávero; Rosa, 2019).

Referências:

BAUMAN, Zygmunt. Trabajo, consumismo y nuevos pobres. Barcelona: Gedisa, 2000.

FÁVERO, Altair Alberto; ROSA, Francieli Nunes da. A Fragilidade dos laços humanos e a felicidade efêmera na sociedade de consumo: implicações formativas. In: FÁVERO, Altair Alberto: TONIETO, Carina; CONSALÉR, Evandro (orgs.). Leituras sobre Zygmunt Bauman e a Educação. Curitiba: CRV, 2019, p.139-152.

Dr. Altair Alberto Fávero Email: altairfavero@gmail.com Professor do Mestrado e Doutorado em Educação da UPF. Também escreveu e publicou “O sentimento moral como virtude”; https://www.neipies.com/o-sentimento-moral-como-virtude/,

Edição: A. R.

1 COMENTÁRIO

  1. Belo artigo! Vai diretamente no coração do problema que enfrentamos no capitalismo: a insatisfação laboral e incapacidade de consumo diretamente ligada à saúde mental e ao conceito de felicidade. Parabéns!

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