“A questão ambiental é a maior urgência que vivemos”

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Autora de romance sobre luta ambiental, Morgana Kretzmann reivindica temas sociais
e climáticos para sua literatura. Autora trata literatura como ferramenta didático-
pedagógica para tratar questões ambientais de maneira mais lúdica e afetuosa, fazendo
com que isso chegue de forma mais profunda aos leitores.

Por Luiza Zauza

Um ecossistema ameaçado por um empreendimento predatório. Uma comunidade à
mercê da ambição mesquinha e maliciosa de políticos e empresários corruptos. Um
esquema de contrabando marcado por violência, heranças e prejuízos ambientais. Essas
são algumas premissas do enredo de Água Turva, romance recente de Morgana
Kretzmann. Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência. A
proximidade entre ficção e realidade faz parte do projeto literário da atriz e escritora
gaúcha.

“Eu venho de um lugar onde quero fazer a luta social e ambiental, nem que seja na
ficção”, afirma. Esse lugar de que Morgana fala é onde se passa a trama de seu livro e
de onde ela conversa com Radis (https://radis.ensp.fiocruz.br/ ) por chamada de vídeo:
sua região natal, próxima ao Parque Estadual do Turvo, no interior rural do Rio Grande
do Sul. Foram quatro anos dedicados a construir com detalhes factuais o cenário fictício
ao redor dessa unidade de conservação ambiental, localizada na fronteira entre Brasil e
Argentina, no Noroeste do estado.

A vencedora do Prêmio São Paulo de Literatura em 2020 com seu romance de
estreia Ao pó foi atrás de se especializar em Gestão Ambiental no Instituto Federal
de Santa Catarina, entrevistar profissionais da área e visitar pessoalmente o
Parque do Turvo diversas vezes para contar essa história, que se desenrola em
torno da ameaça de uma hidrelétrica, cuja construção irá alagar a reserva
ambiental, sumindo com o Salto do Yucumã, a maior queda d’água longitudinal do
mundo, e o último reduto da onça-pintada no Sul do Brasil.

O pano de fundo turbulento movimenta as ações das três protagonistas: Chaya, guarda-
florestal que vive pela proteção do Turvo; Olga, jornalista e assessora parlamentar do
machista e criminoso deputado Heichma; e Preta, líder do grupo de caçadores e
contrabandistas, Pies Rubros, que atuam pelo Rio Uruguai no lado argentino. O destino
das três se cruza em meio a conflitos familiares e heranças geracionais, numa trama ágil
que evoca a literatura policial para discutir o colapso climático e ambiental.

O que foi rotulado como thriller ecológico, hoje também integra o que tem sido
considerado pelo mercado editorial de cli-fi, climate fiction, ou ficção climática, um
gênero literário que se preocupa em tematizar a emergência climática e os impactos da
ação humana sobre o meio ambiente. Para a autora, Água Turva é o resultado de uma
realidade que é prioridade também para a ficção — “o que vejo como a maior urgência
que vivemos no planeta e que não vai acabar agora”.

No bate-papo de quase uma hora, no fim de junho, Morgana conta sobre o processo de
criação do seu segundo romance, o convívio da natureza com a espiritualidade e como a
literatura pode ser uma ferramenta de mudança. Emocionada, ela também dá um
testemunho sobre a tragédia que, poucos meses depois da publicação de Água Turva,
devastou o Rio Grande do Sul exatamente por consequência do desequilíbrio ecológico.
“Hoje não tenho uma frase esperançosa para dizer, quem sabe essa do Mário Quintana”.
Descubra na entrevista a seguir.

Conte um pouco da sua trajetória até chegar na literatura. Como a escrita se
tornou cada vez mais frequente na sua vida?

Nasci no interior do Brasil, na fronteira com a Argentina, num lugar muito ermo — que
é onde eu estou nesse momento, por sinal. Estudei, porém, em escolas que sempre
incentivaram esse meu lado artístico. A arte surgiu na minha vida muito cedo: dança, teatro e escrita. Com 9 anos, comecei a escrever meus primeiros e pequenos livros.
Inclusive, eu os fabricava: grampeava as folhas e fazia os desenhos. Era uma maneira de
criar o mundo que eu queria estar.

E como você foi da carreira de atriz para a de escritora?

Mais tarde, quando me mudei para Porto Alegre, comecei a trabalhar como atriz.
Estudei no Tepa (Teatro Escola de Porto Alegre) e, depois, na Escola de Atores. Fui
para o Rio de Janeiro fazer CAL (Casa das Artes de Laranjeiras), uma das escolas mais
conceituadas e importantes do Brasil. E foi no Rio que comecei a ter menos vergonha de
mostrar o que escrevia. Nunca havia publicado nada, a não ser em blogs, onde deixava
alguns textos, poemas e coisas muito loucas que não tinham nem gênero específico.
Quando casei com o Paulo Scott, que também é escritor, eu já estava morando no Rio
de Janeiro de novo e comecei a fazer um curso de extensão de Roteiro Cinematográfico
na PUC-Rio. É nele que realmente começo a escrever e surge meu primeiro livro, Ao
pó, com o qual ganhei o Prêmio São Paulo. Esse livro nasce como um roteiro, mas
começa a virar um romance e eu passo sete anos escrevendo-o, tentando encontrar a
linguagem, reescrevendo-o várias e várias vezes. Quando eu já era finalista do Prêmio
[São Paulo de Literatura], começaram a surgir convites para editoras maiores.

E como nasceu o romance Água Turva?

Acabei optando pela Companhia das Letras, onde publiquei, então, o Água Turva, que é
esse livro que fala sobre crimes ambientais e tem pinceladas do que é o aquecimento
global. E os próximos livros, que já assinei com eles, também terão questões ambientais
e sociais, que permeiam a minha arte. Nesse meio tempo, também me formei em Gestão
Ambiental, não para trabalhar como gestora, mas para poder colocar [em Água Turva]
os temas ambientais que o planeta vive, o que hoje vejo como a maior urgência que
vivemos e que não vai acabar agora. Eu vou morrer e isso vai continuar sendo uma
urgência. Queria estudar para poder escrever, não falar bobagem; para ter um pouco
mais de domínio das coisas. E foi imprescindível, tanto que o meu trabalho de
conclusão de curso era literatura e meio ambiente: a importância da literatura como
ferramenta didático-pedagógica para tratar questões ambientais de maneira mais lúdica
e afetuosa, fazendo com que isso chegue de forma mais profunda aos leitores. O que
posso dizer é que Água Turva seria a aplicação da pesquisa que fiz.

A literatura se torna então um instrumento para refletir sobre a realidade,
correto?

Hoje, três meses depois do lançamento, percebo que o meu projeto de pesquisa não
estava errado, já que realmente o livro está chegando em pessoas que, inclusive, diziam
que não liam nada sobre meio ambiente porque parecia chato. Tem gente que na
literatura compara [as discussões sobre] meio ambiente com ficção científica, como se isso estivesse longe da realidade. De repente, você começa a ver coisas reais, como o
que estamos vivendo no Rio Grande do Sul, e pega um livro que trata de problemas
ambientais e que também se passa aqui. Um livro que tem uma linguagem ágil. É um
thriller que fala de assuntos afetivos, de uma saga familiar. Quando eu dizia que, através
da literatura, as pessoas poderiam ter um novo tipo de afeto em relação ao planeta,
percebo que, com Água Turva, isso está acontecendo.

Como foi transformar sua pesquisa acadêmica em ficção?

Eu não transformo pesquisa acadêmica em ficção. Eu faço ficção, como sempre
trabalhei. Porém, os conhecimentos que adquiri durante a faculdade estão ali dentro,
como as leis ambientais, sobre caça e unidades de conservação. Só para o Parque do
Turvo eu viajei cinco vezes para entrevistar guardas florestais, funcionários, ribeirinhos,
pessoas que moram do lado argentino e do lado brasileiro do parque. Tudo isso para
entender os crimes ambientais que acontecem nessa região. Considero a geografia do
Parque Estadual do Turvo perfeita para essa história, não só porque é uma unidade de
conservação, mas porque está numa fronteira, dividida por um rio. Consigo tratar, então,
não só de crimes ambientais, mas de toda uma gama de crimes que permeiam uma
fronteira. Uma fronteira que não tem policiamento e tem as próprias leis. Quando crio
os Pies Rubros, um grupo de caçadores de animais silvestres e contrabandistas que
moram do lado argentino, é porque sabemos que nesse lugar há um acordo entre as
pessoas do local, que vai além das leis que temos na nossa ou na constituição argentina.
Queria escrever um livro policial que falasse de crimes ambientais e fronteiriços. E esse
era o lugar mais propício para fazer isso.

O que a abordagem policial trouxe para o livro?

Tenho um incômodo muito grande quando colocam livros policiais como um gênero
menor. Não é de maneira nenhuma. Quando digo que é uma obra policial, não estou
diminuindo a minha história. Passei quatro anos escrevendo. Ele tem quase 300 páginas,
foi feita uma baita pesquisa. Entrei dentro do Parque Estadual do Turvo com o meu
irmão, num lugar muito ermo, junto com um guarda-florestal, para encontrar os
acampamentos desativados de caçadores, as cevas, os trepeiros [caçadores que sobem
em cima das árvores para preparar armadilhas e capturar animais]. Tudo isso foi super
perigoso. Os caçadores estavam lá, tivemos que fugir. Toda essa sensação de fuga e de
busca está no livro. Optei por essa linguagem por acreditar que faria as pessoas se
interessarem ainda mais por uma obra com uma temática ambiental. Não é um livro
“chato” sobre o meio ambiente — como algumas pessoas antigamente falavam.

Seu livro apresenta aspectos fantásticos e espirituais interessantes, tendo esse
misticismo ligado predominantemente à natureza. Por que combinar essas duas
abordagens?

Às vezes, as pessoas falam em “Brasil profundo”, “realismo mágico ou fantástico” e
vários outros termos. Acredito que elas pensam que isso está muito longe, quase algo
irreal, enquanto para mim, meus irmãos, minha sobrinha, meus avós e todos que
vivemos aqui, é a realidade. Quando estou dentro do Parque do Turvo e um panapaná
[nuvem de borboletas] se forma ao redor de mim, como no livro Cem anos de solidão
do Gabo [Gabriel García Márquez], não descrevo algo que imaginei e sonhei. Eu vivi
isso. Entrei no Parque do Turvo e uma nuvem de borboletas voou ao meu redor, e elas
não fogem, não vão embora, você fica tomado por elas. Quando falamos de um
personagem como o Sarampião, existem várias figuras aqui no interior, nessa fronteira
— e não só aqui, mas em outras regiões também — que morreram e as pessoas rezam
por elas. As pessoas realmente têm fé nelas. É claro que invento: o meu Sarampião não
existe, mas poderia ter existido. Existiu um guarda-parque no Turvo há muitos e muitos
anos atrás, meus avós chegaram a conhecê-lo, que tinha esse apelido, chamavam-no de
Sarampião de brincadeira. Achei um nome tão incrível que criei uma família inteira e
um santo ao seu redor.

Essa abordagem que mistura o místico e a natureza parte, portanto, de suas
próprias vivências?

Quando falamos de plantas medicinais, ontem mesmo, eu estava catando espinheira
santa, quebra-pedra e funcho para fazer um chá. Meu pai quando está com pressão alta,
toma os seus remédios, mas antes de dormir vai aqui fora, cata as folhinhas certas, lava,
faz um chá e toma. Quando colocamos isso num livro, as pessoas, principalmente da
cidade grande, veem como algo muito mágico, quando para nós é a realidade.
Crescemos nesse Brasil que muitos nem acreditam existir e com o tempo vamos
aprendendo com os mais velhos sobre essa medicina familiar, que está dentro do pátio
da nossa casa e nunca mais esquecemos. O Sarampião nasce disso, quando ele salva as
netas com os emplastos, os remédios e os chás. Eu entendo o termo realismo mágico. O
livro vai ser publicado na Alemanha e, para eles, é realmente outro mundo. A palavra
que eles usam é “encantados” e penso que é, em todos os sentidos da palavra: do
arrebatamento e da magia. Eles não conseguem imaginar o que é o rio Uruguai, por
exemplo. Eu escrevi uma crônica com uma lenda sobre esse rio para uma revista alemã
e eles achavam que era tudo fantasia, e eu falo que não, o Rio Uruguai existe, gente! [risos]

Chaya, uma das personagens centrais do seu livro, delega para si o compromisso
de cuidar e salvaguardar o Parque do Turvo. Que nível de poder uma sociedade
pode ter sobre as questões ambientais ou das mudanças climáticas?

No livro, vemos a Chaya mais ativa, mas essa é uma luta comunitária. Existe um projeto
de uma hidrelétrica no Rio Uruguai que se chama Garabi Panambi. Ele custaria 5
bilhões de dólares e existe desde a década de 1970. Se fosse construída — no livro,
mudo o nome e crio a Gran-Roncador, já que faço ficção em cima de uma notícia —,
essa hidrelétrica iria gerar uma quantidade de energia muito pequena para todo investimento financeiro, desgaste e crimes ambientais dispensados. O salto do Yucumã,
por exemplo, o maior salto longitudinal de queda d’água do mundo, ficaria debaixo
d’água. Perderíamos o último reduto da onça-pintada do Sul do Brasil, que fica entre
Brasil e Argentina. A onça desce pela floresta e tem os seus filhotes no Turvo, atravessa
o rio Uruguai a nado — é uma ótima nadadora. Espera a cria estar mais ou menos
pronta para a caça, atravessa de volta, e ensina a oncinha a caçar dentro do Turvo. Isso
tudo se perderia debaixo d’água, sem contar a região dos ribeirinhos, cidades e
comunidades agrícolas ao redor.

A literatura pode ajudar a sociedade a reagir contra interesses que ameaçam a
preservação ambiental?

Em vários lugares falam a mesma coisa: “Vou construir uma hidrelétrica, e daí trazer
universidade, empresas, asfalto, isso e aquilo”. É a mesma desculpa do investimento. Só
que com 5 bilhões de dólares, constroem-se quantas universidades, empresas e asfalto?
Quantas cidades podem se reerguer? O quanto se pode girar a economia desses
municípios com 5 bilhões sem precisar colocar em risco o Salto do Yucumã, a Reserva
do Turvo, o último reduto da onça-pintada? E não é dinheiro só de instituição privada.
Na medida em que as comunidades se unem e entendem as discussões econômicas, sem
serem enganadas, elas vão dizer ‘não’ para tudo isso. É o que tento colocar no livro,
especialmente na cena da primeira reunião sobre o Estudo de Impacto Ambiental (EIA).
Tento colocar isso na boca de alguns personagens. É por isso que precisamos lutar
social e politicamente no Brasil: pelo conhecimento.

“Não podemos deixar o conhecimento na mão de poucos.”

O conhecimento liberta, não é mesmo?

Não podemos deixar o conhecimento na mão de poucos. E a literatura entra nessa
questão. Quando entregamos um livro que trata de questões ambientais, raça ou
colorismo, como o Água Turva, o Marrom e Amarelo, do Paulo Scott, e o Avesso da
Pele, do Jefferson Tenório, e alguém lê e estabelece uma relação afetiva com esses
temas, sabemos que essa pessoa constrói outro pensamento. Para conseguir dominá-la,
sejam políticos, igrejas ou patrões, será mais difícil. Quando essas pessoas começam a
pensar por si, seja por meio da literatura ou dos estudos, elas vão reivindicar o que elas
querem. Precisamos lutar pelo estudo e pela leitura para que as pessoas pensem por si e
não deixem uma meia dúzia de poderosos que mandam no nosso continente decidirem
por nós. A gente pode decidir. No Água Turva, quando todos se levantam e vão embora
com a Chaya, é uma comunidade inteira lutando contra meia dúzia de poderosos. E eles
vão vencer. Nem sempre isso acontece na realidade, mas a minha esperança é que cada
vez mais essas coisas aconteçam.

“Quero fazer a luta social e ambiental, nem que seja na ficção.”

Você acha, então, que a literatura pode servir a um propósito?

Acho muito complicado colocarmos o artista num lugar de imposição. O artista não
deve nada, deve à sua própria arte. Ele faz aquilo que acredita, seja qual for o caminho.
Eu, por exemplo, estou num momento da minha vida que cheguei a estudar gestão
ambiental porque quero continuar falando sobre assuntos ambientais e sociais. São
questões caras para mim. Eu venho de uma cidade muito pobre, de uma região
paupérrima do Rio Grande do Sul. Aqui, nesse momento, por causa das enchentes, está
faltando tudo. Falta comida, remédio, gasolina. As pessoas estão realmente passando
fome e necessidade. Estou vendo isso agora, mas já vi tantas outras vezes. Venho de
uma família de agricultores, muito pobres. Quero fazer a luta social e ambiental, nem
que seja na ficção. É o que eu posso fazer. Mas você pode escrever um livro por puro
entretenimento, e isso abrir as portas para quem nunca leu na vida ler outros livros.

E como a sua literatura dialoga com o protagonismo feminino?

Quero continuar falando sobre questões sociais, ambientais e, também, femininas. Me
perguntam, mas você só vai escrever livros com protagonistas mulheres? Gente, tem
milhares de livros com protagonistas homens. A porcentagem de livros com
protagonistas mulheres é infinitamente menor do que com protagonistas homens. Por
que vou escrever mais um livro com um protagonista homem? Quero escrever sobre
mulheres. Em matéria de ficção, o meu prazer é muito maior em criar personagens
femininas fortes, que lutam, que estão com um facão na mão, estão defendendo a sua
comunidade e as suas famílias. Eu me sinto muito mais à vontade fazendo isso.

Suas personagens são complexas, não são maniqueístas. Elas também têm relações
complicadas e têm seus lados imperfeitos, como todos nós temos.

Teve uma pessoa na rede social que disse: “mas em Água Turva as personagens
femininas são todas boas e os masculinos são todos maus”. Um cara que tinha feito uma
ótima resenha respondeu: “Querido, você não leu o livro” [risos]. Quando as mulheres
[do livro] têm que ser más, elas são muito más. O livro começa com a Chaya matando
um homem sem pensar duas vezes.

Exato. A Preta também é uma personagem interessante nesse sentido. Ela tem uma raiva
vinda de herança da avó, uma angústia muito grande por conta da família. Ela também é
uma caçadora, então, de certa forma, ela prejudica o parque. Porém, é a sua maneira de
sobreviver. É difícil julgar completamente esses personagens, não é?

A minha ideia era essa, principalmente a Preta, que é a minha personagem favorita. Ela
surge por último durante o processo de criação. Eu defendo a Preta, inclusive. Ela faz o
que tem que ser feito para defender aquilo que ela acredita. Agora, é correta a maneira
que ela faz as coisas que ela precisa fazer? Não, não é.

O que podemos fazer para quebrar o ciclo trágico que acompanha a crise
climática?

Veja o que está acontecendo no Rio Grande do Sul. Estamos em ano de eleições
municipais e precisamos pensar em pessoas que amem as suas cidades. Estamos cheios
de prefeitos em cidades grandes e do interior, de todas as vertentes políticas, que
parecem odiá-las. Se começássemos a votar em pessoas que amam o seu chão, o seu
território, elas estariam hoje pensando em soluções ambientais para manter esses
lugares. Vemos o que aconteceu em Porto Alegre. É um absurdo que o prefeito tenha
colocado sacos de areia em cima de bueiros para que não abrissem as tampas e a água
voltasse a alagar a cidade. Alguém precisa odiar demais a sua cidade para pensar nesse
tipo de solução. Sinceramente, não tenho resposta para essa pergunta. Mas continuo
achando que agora as coisas vão ser pautadas pela crise climática, e se tornar questões
econômicas e, assim, mobilizar um número maior de pessoas. Quando digo um número
maior de pessoas, são os poderosos, as pessoas que realmente mandam no mundo.
Quem sabe, [a emergência climática] comece a ser vista de outra maneira.

Como tem sido vivenciar o cotidiano após as enchentes no Rio Grande do Sul?

Cheguei aqui no Rio Grande do Sul na terça-feira [em junho], e hoje é o primeiro dia
que parou de chover desde que cheguei. Tive que descer de avião em Chapecó [SC].
Não tem voo mais para o estado. As estradas estão horrorosas. Além da chuva, são
estradas que não foram construídas para aguentar esse volume tão grande de caminhões.
Você vê que está tudo muito destruído. Tem uma tristeza tão grande no ar que só
estando aqui para entender. Tenho vontade de chorar. O Mário Quintana tem uma frase
maravilhosa que diz que a gente sempre está voltando para casa, mesmo que ela não
exista mais. Você vê o seu lar destruído, mas, ao mesmo tempo, é o seu lar. É uma
tristeza muito grande ver tudo debaixo d’água: as estradas destruídas, os morros caídos
e a tristeza das pessoas. Então, hoje não tenho uma frase esperançosa para dizer, quem
sabe essa do Mário Quintana.

“Não vamos conseguir defender a nossa terra, o nosso chão, as nossas florestas e os
nossos rios sem fazer uma luta de classe também.”

Que tipo de herança você quer que seus personagens e seu livro deixem para as
gerações futuras?

Somos responsáveis pelas próximas gerações. É aquele ditado africano, que diz que
quando uma criança nasce, a comunidade toda é responsável por ela. Precisamos pensar
que mundo vamos deixar e como eles vão sobreviver nele. Se esse livro for lido daqui a
20, 30 anos, espero que ele leve a mensagem de que nem todos foram negligentes no
Brasil e no mundo de hoje. Tivemos comunidades e indivíduos que tentaram lutar com

as armas que tinham para melhorar e deixar o mundo habitável para as próximas
gerações. Como disse Chico Mendes, ecologia sem luta de classes é jardinagem. Penso
que não adianta lutarmos só pelas questões ambientais sem pensar nas sociais. É o que
acontece no Rio Grande do Sul. As pessoas mais pobres estão vivendo um sofrimento
que não conseguimos imaginar. No frio, na chuva, sem comida, muitos ainda sem lar.
Perderam absolutamente tudo, ainda não conseguiram ajuda governamental para
comprar o básico. Não vamos conseguir defender a nossa terra, o nosso chão, as nossas
florestas e os nossos rios sem fazer uma luta de classe também. Espero realmente que as
próximas gerações entendam a história de Água Turva, da região de Dourado, da
família Sarampião e de como a comunidade que vive ao redor do Parque do Turvo lutou
para barrar essa construção que permeia o livro.

FONTE: https://radis.ensp.fiocruz.br/entrevista/a-questao-ambiental-e-a-maior-
urgencia-que-vivemos/

Edição: A. R.

Edição: A.R.

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