A racionalidade neoliberal e a cilada da meritocracia

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Social justice money flat composition with unequal opportunities for people with more income and less vector illustration

A meritocracia se torna uma cilada, pois produz “frustrações profundas” para todos, sentimento de impotência e desesperança nas camadas pobres, “ressentimentos sem precedentes dentro da classe média” e “ansiedade incompreensível dentro da elite”.

A compreensão da meritocracia requer um cuidadoso e detalhado olhar, pois se trata de um termo polissêmico, complexo e problemático. Não se trata de uma simples definição que facilmente pode ser resolvida com a ida ao dicionário ou com a invocação o senso comum, pois requer investigação de forma mais profunda sobre seu desdobramento sociológico, histórico, filosófico e ideológico.

Há um consenso entre os diversos estudiosos sobre a temática que o termo meritocracia tem sua origem semântica na obra The Rise of the Meritocracy (A Ascensão da Meritocracia, 1958, sem tradução para o português) do sociólogo inglês Michael Young (1915-2002). Para o sociólogo, a meritocracia se colocaria como um sistema de oposição aos privilégios aristocráticos que perduram na história humana.

A obra distópica de Young (1958) propunha que a Grã-Bretanha mudasse seu critério de organização social, imaginando que o mérito passaria ser o fator que as lideranças utilizariam para selecionar entre as massas os indivíduos que teriam um maior grau de inteligência e de esforço individual, para ocupar as profissões mais bem remuneradas e os cargos políticos mais importantes.

Na distopia de Young (1958), haveria testes sofisticados, cada vez mais eficientes e eficazes, os quais permitiriam prever o coeficiente de inteligência dos indivíduos a tal ponto que seria possível determinar o futuro de cada pessoa, logo após seu nascimento. Assim, a estratificação, antes balizada pelos laços de sangue, agora seria definida pelo mérito “igualmente excludente”.

No final da obra, Young (1958) descreve uma revolta social das classes baixas contra o sistema meritocrático, pois ele acabou por produzir uma elevada eficiência de uma sociedade aparentemente justa, mas profundamente desigual.

Assim, conforme ressaltam Mazza e De Mari (2021, p. 4) em estudo recente, “o texto de Young não se propõe fazer uma discussão analítica dentro dos rigores acadêmicos sobre o significado da meritocracia, mas apresenta as consequências contraditórias pela adesão ao princípio como resultados de uma ideologia de organização social”.

É importante ressaltar que, seguindo os passos de Mazza e De Mari (2021), bem como os estudos de Barbosa (2008), embora o termo meritocracia apareça na segunda metade do século XX, seu nascimento enquanto ideia se confunde com o período moderno europeu, pois foi nesse contexto que a sociedade começou a questionar os privilégios hereditários destinados aos nobres e aristocratas. Se tivermos por referência que “a apologia do liberalismo à igualdade” constitui um dos valores meritocráticos de um processo de organização social, então é possível dizer que a concepção de meritocracia lança suas raízes na gênese do pensamento moderno.

Também é possível afirmar que a seleção por mérito pode manifestar-se tanto como um “valor negativo”, na medida que recusa os privilégios e afirma que nenhum indivíduo pode ter seu destino determinado pelo nascimento e classe social, quanto um “valor afirmativo”, na medida em que as características particulares dos indivíduos se tornam critérios para distingui-los dos demais para obter o merecimento da posição ou status que ocupa. “A meritocracia entendida como negação de privilégios é aceita por todos como uma ferramenta contra a desigualdade social, mas quando aplicada como afirmação do merecimento, justifica as desigualdades” (Mazza; De Mari, 2021, p. 5).

A distinção da “meritocracia como negação” e a “meritocracia como afirmação” é importante, pois, enquanto a primeira tem como consequência social “a tentativa de equalizar oportunidades de desenvolvimento e mobilidade social”, a segunda “se converte na verificação das capacidades individuais”, o que gera individualismo, competição, distinções arbitrárias, consequências paradoxais, “pois o mérito passa de instrumento de luta contra os privilégios a um novo critério de discriminação da sociedade moderna” (Mazza; De Mari, 2021, p. 5–6). É nessa segunda perspectiva que a meritocracia se torna um ideal ético na racionalidade neoliberal.

No seu polêmico e provocativo ensaio A cilada da meritocracia, o professor de direito privado Daniel Markovits (2021) denuncia o mito fundamental da sociedade neoliberal que alimenta a desigualdade, destrói a classe média e consome a elite. A origem de sua denúncia, transformada posteriormente em livro, deu-se quando, ao ser convidado a discursar para os formandos de 2015 da Escola de Direito da Universidade de Yale, “em vez do tradicional discurso laudatório”, Darkovits optou por “partilhar com seus pupilos uma reflexão sobre as causas, engrenagens e consequências da meritocracia” (Vieira, 2021, p. 7).

As reflexões de Darkovits (2021) são oportunas, pois, além de “dissecar o regime meritocrático norte-americano, com especial atenção às distorções que provoca no sistema educacional e no mundo do trabalho, aumentando a desigualdade” (Vieira, 2021, p. 11), ajudam-nos a entender a falaciosa retórica da Tirania do Mérito (Sandel, 2021) ou das medições que reforçam as desigualdades (Fávero; Oliveira, Faria, 2022), ou ainda, “fornecer combustível intelectual para a desconstrução da armadilha meritocrática” e possibilitar “a construção de um regime de ‘igualdade democrática’, centrado no valor inerente a cada ser humano, e não numa falsa meritocracia” (Vieira, 2021, p. 11, grifos do autor).

Darkovits (2021, p. 17–18) inicia a introdução do seu ensaio dizendo que “mérito é uma farsa”, pois, “a meritocracia promete promover a igualdade e a oportunidade”; promete “compatibilizar as vantagens privadas com o interesse público, ao afirmar que riqueza e status devem ser obtidos por conquista”; pretende “unir a sociedade em torno de uma visão comum de trabalho árduo, competência e merecida recompensa”, mas, na prática, “a meritocracia já não funciona como promete”.

Um olhar atento mostra que “as crianças de classe média perdem para as crianças ricas nas escolas”, os adultos da classe média “perdem para a elite de formação superior no trabalho” e, assim, “bloqueia as oportunidades para a classe média”, que se sente culpada por perder “a competição por renda e status”.

A própria elite se torna vítima da meritocracia, pois exige altos investimentos de tempo e dinheiro na educação dos filhos e “os empregos meritocráticos exigem que os adultos da elite trabalhem com uma intensidade esmagadora”, o que leva a uma “concorrência vitalícia implacável para garantir renda e status por meio de sua exagerada dedicação ao trabalho”.

A análise crítica de Markovits (2021, p. 18–22) é cirúrgica quando diz que “a meritocracia atual concentra privilégios e sustenta desigualdades tóxicas”, visto que se tornou “um mecanismo para a concentração e transmissão dinástica de riqueza e privilégios de geração para geração”. Por isso que “o próprio mérito tornou-se um simulacro de virtude, um falso ídolo” que precisa ser exposto, percebido e combatido.

O mérito é um falso ídolo porque faz crer que a meritocracia carrega em si o “senso de justiça e bondade”, que os privilégios foram conquistados com esforço e trabalho, mas, ao mesmo tempo, esconde as condicionalidades dessas conquistas e as desigualdades produzidas pelo jogo meritocrático. Enquanto “o brilho da meritocracia seduz a imaginação e captura o olhar”, identificando-se como moral básica para a experiência cotidiana do jogo democrático, “dissimula os danos” e progride, impondo “uma nova e opressiva hierarquia” das e nas elites que “monopolizam não só a renda, a riqueza e o poder, mas também as atividades, as honras públicas e o apreço”.

A meritocracia é cruel e desumana com os pobres, com os destituídos de condições materiais, com os que recebem uma educação precária, com os que não possuem, nos termos de Bourdieu (2001), capital econômico, cultural, social e simbólico. Mas, para Markovits (2021, p. 22–25), a meritocracia oprime também a classe média, pois “expulsa a maioria dos cidadãos para as margens da sociedade, condenando as crianças de classe média a escolas menos brilhantes e os adultos de classe média a empregos medíocres”. É um equívoco, frequentemente assimilado pelo senso comum, confundir “meritocracia com igualdade de oportunidades” (Markovits, 2021).

Embora a meritocracia tenha sido adotada retoricamente como estando à serviço da igualdade de oportunidades, proporcionando virtualmente uma suposta mobilidade de classe, “atualmente ela mais estaciona do que favorece a mobilidade social” (Markovits, 2021). De forma astuta, “a meritocracia modifica empregos de modo a favorecer os graduados super instruídos das universidades de elite” (Markovits, 2021), “faz do desempenho escolar e laboral a imagem da honra”, ao mesmo tempo que “frustra as tentativas de satisfazer os padrões que ela própria proclama, garantindo que a maior parte das pessoas não os atinja”.

Outro fator importante apontado por Markovits (2021, p. 27), diz respeito à forma como a meritocracia divide a sociedade, em que se produz uma “desigualdade meritocrática” que “inspira hostilidade” e “alimenta um conflito de classes sistemático que deforma a vida social e política”. Tal conflito gera “ressentimento e desconfiança” contra “os ideais e as instituições que a meritocracia valoriza”. Facilmente, o ressentimento e a desconfiança se transformam em discurso de ódio contra os diferentes, os indesejados, os estranhos, os oponentes e os rotulados como “culpados”.

O Brasil vive esse cenário quando a polarização política ganha traços de ressentimentos convertidos em discurso de ódio às instituições ou a grupos que supostamente se colocam como obstáculos à suposta e mal compreendida liberdade de expressão e a participação do ilusório jogo meritocrático.

Seguindo os propósitos deste escrito, resta dizer que a meritocracia é peça chave para compreender a lógica interna da racionalidade liberal, pois concretiza tanto os princípios quanto as ações que dão materialidade à referida racionalidade. Individualismo, competição, competitividade, empresariamento de si mesmo, livre iniciativa, flexibilidade, redução dos encargos sociais e dos direitos sociais, mínima intervenção estatal da economia, autogestão e autorregulação do mercado, flexibilização, globalização da economia, ethos empreender, eficiência, eficácia, gerencialismo são alguns dos tantos termos que caracterizam a racionalidade neoliberal que tem colonizado o mundo da vida nas últimas décadas, inclusive no campo educacional escolar.

Conhecer e compreender essa racionalidade colonizadora constitui uma estratégia importante e central para descortinar as armadilhas sedutoras que dominam corpos e mentes na triste epopeia neoliberal que transformou o planeta terra e a própria humanidade em objetos subservientes ao deus mercado, em que tudo e todos são reduzidos à condição de mercadoria. Nesse processo de transformação da vida e das relações em bens mercadológicos, a apropriação da meritocracia pela racionalidade neoliberal ocupa um lugar estratégico importante de convencimento e de sedução.

Conforme bem qualifica Markovits (2021, p. 28–30), “o brilho da meritocracia sequestra a imaginação e distrai a atenção analítica”, ao mesmo tempo que desmobiliza o “espírito crítico” e produz “um poço profundo de descontentamento”. O discurso amplamente difundido de que “qualquer um pode ter sucesso”, de que a “educação nunca recebeu tanto dinheiro nem foi tão acessível como na atualidade” e de que empregos e carreiras “agora estão cada vez mais abertos ao esforço e ao talento”, torna-se falacioso quando confrontado com as evidências empíricas do aumento da “desigualdade meritocrática”.

Assim, a meritocracia se torna uma cilada, pois produz “frustrações profundas” para todos, sentimento de impotência e desesperança nas camadas pobres, “ressentimentos sem precedentes dentro da classe média” e “ansiedade incompreensível dentro da elite”. A cilada da meritocracia se torna mais eficiente quando se torna um dispositivo educacional doutrinador da racionalidade neoliberal.

O texto aqui apresentado é uma parte do Capítulo intitulado “A meritocracia como ideal ético da racionalidade neoliberal e suas implicações na educação” (Pereira, Fávero, Costa e Fochesatto, 2024) publicado na décima quarta coletânea do Gepes/PPGEdu/UPF. Para os que tiverem interesse em acessar a coletânea completa, segue o link de acesso ao ebook gratuito:

https://www.researchgate.net/publication/381806089_Politicas_educacionais_e_Neoliberalismo

Referências:

FÁVERO, Altair Alberto; OLIVEIRA, Julia Costa; FARIA, Thalia Leite de. Crítica às “medições” em educação à luz da teoria das capacidades: a meritocracia que reforça a desigualdade. Revista Internacional de Educação Superior – Riesup, Campinas/SP, v. 8, p. 1–16, 2022. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/riesup/article/view/8665579 Acesso em: 23 out.2023.

MARKOVITS, Daniel. A cilada da meritocracia. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021.

MAZZA, José Giordano; DE MARI, Cezar Luiz. Meritocracia: origens do termo e desdobramentos no sistema educacional do Reino Unido. Pro-Posições, Campinas/SP, v.32, e20190063, p. 1–22, 2021. Disponível em: https://www.scielo.br/j/pp/a/RgrxhFhvFqnLwSGcdZ3VMky/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 13 out. 2023.

PEREIRA, Taís Silva; FÁVERO, Altair Alberto; COSTA, Adriana; FOCHESATTO, Ana Luiza. A meritocracia como ideal ético da racionalidade neoliberal e suas implicações na educação. In: FÁVERO, Altair Alberto; TONIETO, Carina; BELLENZIER, Caroline Simon; CENTENARO, Junior Bufon (Orgs.). Políticas Educacionais e Neoliberalismo. Porto Alegre: Livrologia, 2024, p.613-630.

VIEIRA, Oscar Vilhena. Prefácio. In: MARKOVITS, Daniel. A cilada da meritocracia.Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021, p. 7–16.

Autor: Altair Alberto Fávero – E-mail: altairfavero@gmail.com Professor e Pesquisador do Mestrado e Doutorado em educação UPF. Também escreveu e publicou no site “Educar para humanizar e resistir à racionalidade neoliberal”: www.neipies.com/educar-para-humanizar-e-resistir-a-racionalidade-neoliberal/

Edição: A. R.

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