Não podemos mais permitir a violência da morte que ignora a face humana do inimigo ou do concorrente que tira os direitos de nossos cidadãos através do tráfico e do contrabando.
Em 15/04/2023, editamos, neste site, reflexão sobre a qual segue esta continuidade – Parte 2. Leia também: https://www.neipies.com/a-vida-em-crise-quando-a-existencia-nao-encontra-seu-lugar-questoes-antropologicas-do-trafico-de-pessoas-parte-1/
Tráfico de pessoas: a experiência de não poder existir
No início dos anos 1900, o mundo já era percebido como estando no meio de um absurdo geral produzido pelo avanço de uma ciência que prometia que a tecnologia proporcionaria todo o prazer necessário que os seres humanos necessitavam.
Não era novidade que este não era o caso, pois uma ilusão baseada no controle não poderia se concretizar. Acima de tudo porque o controle da produção através de maquinário tirou o lugar do ser humano que, a partir daquele momento, deixaria de dar o toque pessoal à criação, disfarçando-a em um terno de metal frio e escuro. Desta insatisfação, a parte poderosa da humanidade seguiria seu curso na ânsia de poder e na subjugação de seus semelhantes.
Esta atmosfera enrarecida na qual o ser humano é reduzido a um “nada”, se reflete nos escritos de vários filósofos e escritores que, com seus pensamentos, foram capazes de dizer o que o mundo inteiro está experimentando até hoje. O escritor e filósofo Miguel de Unamuno, em uma das páginas magistral de sua grande obra Niebla, descreveu o diálogo entre o escritor e seu personagem, Augusto, como segue:
“-Não, homem, não! -Eu respondi-. Eu lhe disse antes que você não estava acordado nem dormindo, e agora eu lhe digo que você não está nem morto nem vivo.
-Você se explica imediatamente, pelo amor de Deus, explique-se! -me implorou com consternação. Pois tais são as coisas que estou vendo e ouvindo esta tarde, que temo estar ficando louco.
-Bem, a verdade é, meu caro Augusto”, eu disse em minha mais doce voz, “que você não pode se matar porque não está vivo, e não está vivo, e não está morto, porque não existe….”[1].
E esta é a experiência daqueles que sofrem em suas vidas o desprezo de não serem respeitados -e pior- de não serem protegidos por aqueles que têm o dever de fazê-lo. As vítimas de vários abusos tentam ser convencidas de que eles não existem, que são apenas uma ficção na mente daqueles que os produzem.
E esta é uma realidade patente no trabalho escravo, no tráfico de pessoas, no tráfico de crianças, na prostituição infantil e em todas as ações onde a sede de egoísmo supera a racionalidade humana e é capaz de dilacerar a vida de outros seres humanos. Os homens e mulheres de nosso tempo são desafiados a cultivar um sentimento de fraternidade com a dor dos outros, para que possamos reverter esta situação que traz tanta exclusão de mulheres e crianças, adolescentes e jovens, idosos e deficientes.
Exploração humana: seres humanos contra si mesmos
Sem um horizonte esperançoso, com tantas ameaças que dobram as ilusões da humanidade, ela é envenenada desde suas próprias raízes, provocando um fluxo contínuo de destruição e auto-contestado.
Nestes tempos em que o jogo político nos faz sentir dentro de uma maré tão grande onde tememos estar cobertos por uma onda de infortúnios, é difícil para nós olhar além destas situações e acreditar que podemos sair – e acima de tudo tirar os outros – de situações de violência e exploração. Aqueles de nós que vivem do nosso trabalho têm que crescer na consciência de que muitos morrem porque não o têm, e que outros lucram com isso fazendo deles seus escravos em situações sub-humanas.
Em questões de defesa de nossos direitos, a filósofa americana Martha Nussbaum tem feito um grande trabalho sobre as possibilidades de desenvolvimento humano no mundo de hoje. Referindo-se às mulheres, ela argumenta que elas têm sido as eternas vítimas de um machismo e patriarcalismo que as trata como um objeto ou como uma coisa a ser possuída, com os homens acreditando que têm o direito de fazer com elas o que quiserem.
Em sua proposta filosófico-política, ela tenta aprofundar a necessidade de um feminismo que defenda os direitos da mulher de acordo com suas capacidades.
Relendo Marx sobre o valor de cada pessoa, ela diz: “Marx, como seus predecessores burgueses, sustenta que é profundamente errado subordinar os fins de alguns indivíduos aos fins de outros. Isto está no cerne do que constitui exploração: tratar uma pessoa como um mero objeto para o uso dos outros”[2].
Embora proponha um feminismo em defesa da mulher em primeiro lugar, estas palavras se estendem a todos os seres humanos, especialmente aqueles mais desprotegidos da gestão diabólica do mercado. Neste sentido, estando claro que o capitalismo gera mercados (de escravos, tráfico, prostituição, pornografia, tráfico, etc.), o que devemos continuar a promover é uma proposta política que atravessa não apenas todos os sistemas atuais de governo, mas todas as culturas, tradições, religiões e sistemas éticos. Isto é o que Nussbaum – junto com Rawls – chamará de consenso sobreposto, que inclui todas as pessoas e suas ideias, mas defende a vida humana como uma revelação da natureza humana única.
Para concluir, faço notar que, entre as capacidades centrais para o funcionamento humano, Nussbaum coloca ao lado da vida e da saúde, a integridade corporal como a capacidade de mover-se de um lugar para outro, “onde os limites do próprio corpo são tratados como soberanos, ou seja, capazes de segurança contra agressões, incluindo agressões sexuais, abuso infantil e violência doméstica; tendo oportunidades para a realização sexual e para a escolha reprodutiva”[3].
Este é um ponto-chave para reflexão adicional: não podemos mais permitir a violência da morte que ignora a face humana do inimigo ou do concorrente que tira os direitos de nossos cidadãos através do tráfico e do contrabando. Devemos propor uma violência da vida “porque requer fazer violência a si mesmo, deixando a segurança acima de tudo, deixando a passividade e a inibição para não entrar em conflito…”[4].
Defender a própria vida e a vida dos outros implica exigir que deixemos nosso conforto e nossa aparente segurança para arriscar nossas vidas, para que todos possamos existir.
Autor: Diego Pereira Ríos
*Imagem tomada de: https://www.observador.com.py/el-2022-cerro-con-mas-de-200-causas-por-trata-de-personas/
[1] Unamuno, Miguel, Niebla, Cátedra, Madrid, 2007, pp. 278-279.
[2] Nussbaum, Martha C., Las mujeres y el desarrollo humano, Herder, Barcelona, 2002, p. 115.
[3] Ibidem, p. 118.
[4] Trigo, Pedro, Relaciones humanizadoras, Universidad Alberto Hurtado, Santiago de Chile, 2013, p. 203.