Por mais que soe estranho aos nossos ouvidos, a vingança divina é motivada pelo amor, assim como qualquer outro de Seus atributos morais. A vingança de Deus nada mais é do que a retribuição exigida por Sua justiça, e a Sua justiça é um exigência do Seu amor.
“V de Vingança” é uma adaptação cinematográfica da série de quadrinhos de mesmo nome publicada pela DC Comics sob a sua marca Vertigo. Tendo Londres como cenário, o filme retrata uma sociedade distópica num futuro próximo, regida por um ditador fascista, bem ao estilo de Hitler, que usa e abusa de táticas de repressão como sequestros, torturas e assassinatos de quem se opõe ao regime.
Com a mídia sob o seu controle, a censura impera e se estende por todas as formas de manifestação cultural, desde as artes à religião. É neste cenário caótico que surge a enigmática e carismática figura de V, o mascarado defensor da liberdade, disposto a vingar-se dos que o desfiguraram.
V se dispõe às últimas consequências, inclusive explodir prédios públicos e fazer justiça com as próprias mãos. À serviço do sistema, a polícia empreende uma frenética busca para capturá-lo, antes que se deflagre uma revolução.
O personagem inspirou manifestações ao redor do mundo exigindo a queda de regimes totalitários e a prisão de políticos corruptos.
É raro assistir a uma manifestação popular em que sua máscara não apareça em meio à multidão. De repente, o que era considerado uma vicissitude, passou a ser considerado uma virtude. Mesmo assim, não parece de bom tom atribuir a Deus um ato de vingança, assim como muitos encontram dificuldade em atribuir-lhe ira e castigo.
Todos reclamam em uníssono da impunidade que impera no país, e sentem-se realizados quando veem uma figura importante do cenário político ou empresarial sendo presa, mas insistem na ojeriza à ideia de um Deus que puna. Afinal, dizem eles, como um Deus de amor poderia irar-se? Ou como um Deus misericordioso poderia castigar? Ou como um Deus que nos ensina a perdoar seria capaz de vingar-se?
Mas, fato é que não faltam passagens nas Escrituras que atestam tais atributos. Já houve quem afirmasse, com base em passagens do Antigo Testamento, que o Deus ali revelado não seria o mesmo a quem Jesus chamava de Pai. Entretanto, o Novo Testamento está cheio de passagens que falam de ira divina, bem como de Sua vingança contra toda a injustiça praticada pelos homens.
À luz de uma boa teologia, nenhum desses atributos entra em choque com os atributos do amor, da misericórdia e do perdão. Aliás, eles deveriam nos soar como um incentivo para que fôssemos amorosos, misericordiosos e perdoadores.
Repare, por exemplo, na recomendação de Paulo: “Não torneis a ninguém mal por mal; esforçai-vos por fazer o bem perante todos os homens; se possível, quanto depender de vós, tende paz com todos os homens; não vos vingueis a vós mesmos, amados, mas dai lugar à ira; porque está escrito: A mim me pertence a vingança; eu é que retribuirei, diz o Senhor” (Romanos 12:17-19).
Portanto, não nos cabe vingar-nos, mas tão-somente amar e perdoar, deixando que Deus se encarregue de exercer o Seu juízo. Querer vingar-se é tomar o lugar de Deus. Obviamente, a vingança divina não é da mesma natureza da vingança humana, assim como a ira divina nada tem a ver com a ira humana. Nas palavras de Tiago, a ira dos homens não produz a justiça requerida por Deus (Tiago 1:20).
A vingança humana costuma ser desproporcional, pois é motivada pelo ódio, pela mágoa, pelo rancor, bem diferente da vingança divina, motivada pelo amor. Isso mesmo! Por mais que soe estranho aos nossos ouvidos, a vingança divina é motivada pelo amor, assim como qualquer outro de Seus atributos morais. A vingança de Deus nada mais é do que a retribuição exigida por Sua justiça, e a Sua justiça é um exigência do Seu amor.
Quem busca fazer justiça com as próprias mãos nem sempre pretende dar uma punição justa, e sim causar sofrimento ao outro, porque é motivado pelo ódio. Um claro exemplo bíblico disso é o de Sansão que havendo sido trapaceado por alguns homens em uma aposta feita no dia de seu casamento, decidiu vingar-se, destruindo plantações e matando muita gente (Juízes 15:7-8).
Qualquer leitor atento das Escrituras perceberá que o herói hebreu errou na mão. A vingança também pode ser dirigida contra a pessoa errada. Depois que Sansão causou toda aquela confusão, os filisteus resolveram se vingar na sua esposa e no seu sogro, que, definitivamente, não deveriam ser culpabilizados pela situação (Juízes 15:6). Fica claro que o que eles pretendiam era atingir indiretamente a Sansão, causando-lhe dor e prejuízo. Pessoas vingativas não se preocupam com os efeitos colaterais de suas ações, mesmo que inocentes sejam atingidos.
Como seguidores de Cristo, estamos desautorizados a nos vingar a nós mesmos. O máximo a que temos direito é a dar lugar à ira, isto é, à indignação pela injustiça.
Entretanto, mesmo esta santa indignação não nos autoriza a odiar aos que nos injustiçaram. “Não te vingarás nem guardarás ira contra os filhos do teu povo”, diz o Senhor, “mas amarás o teu próximo como a ti mesmo. Eu sou o Senhor” (Levítico 19:18).
A melhor maneira de combater qualquer foco de ódio, rancor ou vingança em nosso coração é cultivando nossa confiança na justiça divina. Mesmo que pareça tardar, ela certamente não falhará. Ela segue sigilosamente, sem alarde, até o momento determinado por Deus para que se manifeste. “Acaso não guardei isso em sigilo? Não o selei em meio aos meus tesouros mais secretos?”, indaga o Senhor, “a mim pertence a vingança e a retribuição (…) Porque o Senhor fará justiça ao seu povo, e se compadecerá de seus servos!”(Deuteronômio 32:34-35a,36a).
De uma coisa podemos estar certos: Deus não está fazendo vista grossa aos desmandos dos que oprimem o Seu povo. Toda injustiça será retribuída. Por isso, Ele ordenou: “Dizei aos turbados de coração: Sede fortes, não temais; eis que o vosso Deus virá com vingança, com recompensa de Deus; ele virá, e vos salvará” (Isaías 35:4).
Somente Deus tem o direito à vingança porque só Ele é justo para dar a punição correta. Quanto a nós, temos que aprender a perdoar e a retribuir o mal com o bem (Romanos 12:17-21). Perdoar não é colocar panos quentes, fazer vista grossa ou dizer que a pessoa não mereça punição, mas deixar de fazer da punição uma exigência que vise saciar nossa sede de vingança. Quando perdoamos deixamos a punição a critério de Deus.
Se quisermos ter a certeza de que perdoamos, teremos que conferir o que desejamos que aconteça a quem nos ofendeu. Não adianta dizer que perdoamos, se, lá no fundo, ainda nutrimos um desejo de vingança.
Perdoar é abrir mão do direito de revanche. Devemos, portanto, seguir as pegadas de Jesus, que “sendo injuriado, não injuriava, padecendo, não ameaçava, mas entregava-se àquele que julga justamente” (1 Pedro 2:23).
Romano Guardini, teólogo italiano, concluiu: “Enquanto você estiver emaranhado no erro e na vingança, golpe e contragolpe, agressão e defesa, você será constantemente atraído para um novo erro […] Apenas o perdão nos liberta da injustiça dos outros.”[1]
De acordo com Lewis Smedes, “a vingança é uma paixão de acerto de contas. É um desejo ardente de devolver tanto sofrimento quanto alguém lhe afligiu […] O problema com ela é que nunca alcança o que deseja; nunca chega ao empate. A justiça nunca acontece.
A reação em cadeia iniciada por cada ato de vingança sempre segue o seu curso desimpedida. Ela amarra ambos, o injuriado e o injuriador, a uma escada rolante de sofrimento. Ambos são impedidos de prosseguir na escada quando se exige paridade, e a escada não para nunca, nunca deixa ninguém descer.”[2]
Só há uma maneira de descer dessa escada rolante: perdoando. Perdoar é permitir que as coisas sigam seu curso natural. É liberar as pessoas que nos magoaram para que sejam felizes, apesar daquilo que nos infligiram.
Quando perdoamos, quebramos um interminável ciclo de ofensas. Por mais que a justiça clame: “Olho por olho, dente por dente”, o amor deve falar mais alto. Ghandi tinha razão ao observar que, se todos exigissem “olho por olho”, no final todos estariam cegos.
Referências:
[1] GUARDINI, Romano. The Lord. Chicago: Regnery Gateway, 1954. p. 302.
[2] SMEDES, Lewis B. Forgive and forget. São Francisco: Harper & Row, 1984. p. 130.
Autor: Hermes C. Fernandes
Edição: Alex Rosset