Adoeci ao atender pessoas torturadas

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Com todos os seus defeitos, o regime democrático de direito, com os três poderes independentes uns dos outros, mais o poder da imprensa livre e de tantas associações e entidades, é o único possível de nos proteger de psicopatas sádicos rindo do sofrimento humano nos porões das ditaduras sejam elas ditas de direita ou de esquerda.

Durante mais de dez anos, nas décadas de 1980 e 1990, colaborei intensamente com a Anistia Internacional. Além de ajudar financeiramente, passei, como psiquiatra, a atender pessoas que haviam sido barbaramente torturadas por ditaduras. A maioria era de brasileiros, alguns argentinos e poucos chilenos. Outros colegas, de outras cidades, atenderam uruguaios e cubanos.

Quando abordo esse tema, acho de fundamental importância relembrar que os atuais militares da ativa nem eram nascidos em 1964. E cabe elogiar os nossos generais que não aceitaram a instalação de uma nova ditadura militar.

Como escreveu Denis Lerrer Rosenfield, no Estadão: “Se golpe não houve, isso se deve a três generais democratas que exerceram um efetivo protagonismo, embora pouco tenha aparecido na imprensa”. E cita os generais Tomás Paiva, Richard Nunes e Valério Stumpf.

Voltando à Anistia Internacional, os pacientes que me eram enviados se hospedavam gratuitamente em um hotel, por gentileza do proprietário. Mesmo quando a ditadura brasileira já havia terminado, Sarney era o presidente, eu tinha de guardar segredo e sequer registrar os atendimentos, pois havia o temor de que a ditadura, a qualquer momento, retornasse. Nem para outros membros da Anistia se revelava o que se fazia.

No meu caso, só tinha contato com um psiquiatra de Oslo, na época sede da Anistia Internacional, colega bastante experiente e com outro colega do Peru, inexperiente como eu. Usávamos medicação antidepressiva e ansiolítica e psicoterapia. A abordagem ensinada pelo colega de Oslo focava no que se chamava de “gente sente como gente”.

O problema central dos pacientes era a dor da indiferença. A dor física da tortura era insuportável, mas tendia a ir diminuindo com o tempo. Porém, a dor emocional não desaparecia. A dor da indiferença, da frieza, da desumanidade.

Era terrível perceber que os torturadores e os presentes na sala absolutamente não se condoíam. Era terrível não mais ser considerado “gente”. Ouvir as gargalhadas deles, provocadas por assuntos deles enquanto “trabalhavam” eletrocutando, afogando, arrancando unhas… E perceber a risada sádica, o prazer de provocar o pior sofrimento. Na função de torturador, só ficam os que são psicopatas sádicos. Se alguém não é assim, participa uma vez e não consegue continuar.

A terapia teria de devolver a humanidade ao paciente. Ou seja, o mais importante era o terapeuta entender o motivo de tanto sofrimento e sofrer com o relato que ouvia, sofrer com o paciente. Ser “gente que sente como gente”. Impossível não chorar.

Todos os pacientes que chegaram a mim apresentavam pelo menos transtorno de estresse pós-traumático primário. Sigla: TEPT primário.

E o colega de Oslo avisou a mim e ao psiquiatra peruano que, nessa atividade, nós desenvolveríamos o que hoje chamamos de TEPT secundário. Os relatos ouvidos ficariam ecoando dentro de nós, a imagem da dor viria a nossa mente em flashes e seguiria vindo muito tempo depois de concluído o atendimento. Orientava que atendêssemos um paciente por vez para não adoecermos, ou melhor, para adoecermos pouco.

Por vários anos, até perder o contato, troquei correspondência com o peruano e ambos reconhecíamos que havíamos ficado com TEPT secundário. Ainda hoje sinto vestígios do quadro.

Não vou revelar em detalhes nenhum caso, não quero de forma alguma adoecê-los.

Apenas vou dizer que é de uma tristeza insuportável pensar que se vai morrer numa prisão clandestina, longe dos familiares, dos amigos, atrás de uma porta de ferro, com sede, com fome, com frio, com dor, ouvindo o praguejar dos carcereiros e os gritos dos colegas de infortúnio sofrendo tortura.

Com todos os seus defeitos, o regime democrático de direito, com os três poderes independentes uns dos outros, mais o poder da imprensa livre e de tantas associações e entidades, é o único possível de nos proteger de psicopatas sádicos rindo do sofrimento humano nos porões das ditaduras sejam elas ditas de direita ou de esquerda.

Autor: Jorge Alberto Salton

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