Ainda Estamos Aqui

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O filme traz alento e fortalece o seguir dizendo “ainda estamos aqui” e seguiremos, aqui e em todos os lugares, em luta, para que a promessa alcance a realidade, as possibilidades se tornem efetivação… Badalado e premiado, o filme retoma um tema espinhoso, ainda que de um modo não tão duro: as violações de direitos humanos patrocinadas pelo regime militar brasileiro inaugurado há quase 61 anos.

Ainda estamos aqui”, dizem aquelas e aqueles que lutam por direitos humanos, uma luta que vem de longe, na ação militante como defensoras e defensores de direitos humanos, em diversas organizações, movimentos e iniciativas de luta. Sentiram um frescor no ar movimentado desde “Ainda estou aqui”, o filme.

Badalado e premiado, o filme retoma um tema espinhoso, ainda que de um modo não tão duro: as violações de direitos humanos patrocinadas pelo regime militar brasileiro inaugurado há quase 61 anos.

Em tempos de redes sociais, conseguiu resistir aos ataques da ultradireita. Rompeu um padrão militar brasileiro: o de converter toda crítica ao período militar a revanchismo. Está sendo visto como um revival da agenda antimilitares golpistas, de ontem, de hoje, de sempre. Aqueles mais entusiasmados até dizem que o filme teria destravado a agenda de denúncia dos crimes e dos criminosos, acreditando na possibilidade de reconsideração da lei da anistia, ou ao menos parte dela – como sugerem os encaminhamentos no Supremo Tribunal Federal… Aqueles ainda mais encorajados acreditam que teria ajudado a criar um clima favorável à denúncia do Procurador Geral da República contra vários militares – incluindo-se entre eles o ex-presidente – pela recente tentativa frustrada de golpe que culminou no 08 de janeiro de 2023. Nem tanto um e nem tanto outro, modestamente, se poderia dizer.

O filme certamente abriu um momento de valorização da defesa dos direitos humanos, do reconhecimento a defensoras e defensores de direitos humanos. Isso veio especialmente pelas manifestações de Fernanda Torres a este respeito na resposta que dá ao telefonema do Presidente da República, depois de laureada pelo Globo de Ouro.

Fernanda Torres disse que a vitória se dava: “Em nome da Eunice Paiva! Uma mulher defensora dos direitos humanos. É muito simbólico”. Mas, ainda que isso seja uma grande verdade, e é, seu impacto está longe de conseguir remover o entulho autoritário que marca estruturalmente a sociedade brasileira que, na sua maioria, continua achando que defensor de diretos humanos é “defensor de bandidos” – posição alimentada, aliás, exatamente pela ditadura militar.

O enredo do filme, dizem críticos, teria jogado a luta e a resistência à ditadura de um lugar costumeiramente político, típico de organizações (armadas ou não), para um lugar do afeto, a experiência familiar – de classe média alta, portanto, bem longe da típica família brasileira. Esta situação, para quem costuma ser engajado em roteiros mais politizados, pode ver na película uma certa despolitização. Mas, ela pode também ser vista como uma politização da experiência familiar, fugindo, por vários motivos, de ficar refém da captura conservadora de seu sentido e até da tipicidade de seu modelo, realçando a força feminina, realidade, inclusive, da maioria das famílias brasileiras, particularmente das mais pobres.

O reportar a experiência desde o âmbito familiar, de classe média, da zona sul carioca ou dos bairros aquinhoados de São Paulo, entre outros aspectos, pode colaborar para, mais uma vez, reforçar o lugar comum de não apresentar o quanto os pobres, os pretos e pretas, indígenas e camponeses, entre outros, teriam sido atingidos pela ditadura.

Sim, pode ser, mas é bom lembrar que esse talvez seja um problema não somente para diretores e roteiristas, talvez continue sendo uma falsa compreensão reiterada por vários setores progressistas e de esquerda da sociedade brasileira que, ou desconhecem, ou seguem não valorizando o impacto que a ditadura efetivamente gerou com força na vida popular.

Exagerando um pouco, tudo isso pode ter a ver com o fato de que os direitos humanos ainda não estão no cotidiano destas maiorias, à época e ainda hoje, produzindo um estranhamento das classes populares com os direitos humanos que, por vezes, alimenta sua desavisada aderência às posições ultraconservadoras a respeito.

Infelizmente, ainda que o filme tenha sido visto por mais de cinco milhões de pessoas e que muitas delas sejam jovens, certamente está longe de chegar às classes populares, periféricas e negativamente impactadas pela não realização cotidiana dos direitos humanos em suas vidas. Isso não torna o movimento gerado pelo filme de menor importância, somente indica o tamanho do desafio político-pedagógico que, tanto um produto audiovisual, quanto a dinâmica social e o próprio processo formal de educação ainda tem como tarefa a cumprir.

Um aplauso à valorização das lutas e dos lutadores e lutadoras de diretos humanos é fenomenal… mas, mais fenomenal ainda será quando já não for a violação e a violência o que dita o dia a dia de autodefesa nas comunidades populares e sim a proteção e garantia de todos os direitos para todas as pessoas, e mais enfaticamente ainda para aquelas que nunca sequer provaram de sua existência.

O filme traz alento e fortalece o seguir dizendo “ainda estamos aqui” e seguiremos, aqui e em todos os lugares, em luta, para que a promessa alcance a realidade, as possibilidades se tornem efetivação…  

Autor: Paulo César Carbonari, Doutor em Filosofia (Unisinos), membro da coordenação nacional do Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH Brasil), associado da Comissão de Direitos Humanos de Passo Fundo (CDHPF). Também escreveu e publicou no site “Borrachas no passado, para tocar em frente, nunca mais”:  www.neipies.com/borrachas-no-passado-para-tocar-em-frente-nunca-mais/

Edição: A. R.

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