Ainda Estão Aqui

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Disseram que nós não chegaríamos aqui. E houve quem dissesse que nós só chegaríamos aqui por cima de seus cadáveres. Mas o mundo inteiro hoje sabe que nós estamos aqui. (Martin Luther King)

Esta publicação foi construída a duas mãos, por Convidado e Convidada deste site. O primeiro texto, uma crônica. Os textos que seguem, microcontos. Ambos, complementam-se na temática proposta pelo título.

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(Por Eládio V. Weschenfelder)  

Quando é chegado o tempo em que é perigoso comer bolo, por suspeita de estar envenenado, ou beber algo por conter “Boa-noite, Cinderela”, é o indicativo de que todo mundo é suspeito de ter o espírito sombrio. Nada de se aceitar uma fatia de bolo, uma balinha, um bombom, uma bebidinha, um prato de comida. Nada! Nada! Tudo por precaução. Como se vê, o lado radiante e feliz ficou ofuscado pelo lado sombrio da humanidade.  

Lá pelos anos 470 AC, o filósofo grego Sócrates, além de estudar música, gramática e filosofia, questionou os valores sociais, morais e políticos impostos pela sociedade grega. Por isso foi acusado de negar os deuses e corromper os jovens, sendo condenado à morte por envenenamento (Cicuta). Deve ter sido por ódio dos que pensavam diferente.  Ao longo da história, reis, rainhas, homens e mulheres inocentes foram brutalmente “cicutados”.  A órfã Branca de Neve, por muito pouco, não foi vítima fatal da Rainha Má por um motivo fútil: ciúmes.   

Outras modalidades de violação à vida são praticadas contra crianças, idosos e mulheres.  No que se refere à pedofilia, por exemplo, destaca-se o fato de que os principais algozes são os familiares: pais, padrastos, tios, tias e vizinhos. Em âmbito geral, as crianças também são as principais vítimas das guerras, tanto no âmbito das armas, como da fome e das doenças. Veja-se o caso dos conflitos entre Palestina e Israel, Rússia e Ucrânia.

Nessa perspectiva, a escritora brasileira Luciana Savaget, na obra intitulada Operação Resgate na Palestina: a Herança de um conflito, descreve a situação das crianças nos campos de refugiados e nas áreas de conflito, onde os fins justificam a morte e a mutilação da população infantil. Confessa que o único meio de recuperar meninos e meninas de olhar sem brilho e coração murcho é contar-lhes histórias e disponibilizar livros e ambiências (bibliotecas) para leitura. A contação de histórias e os ambientes para leitura tornam as crianças mais radiantes e esperançosas.

Contra a população idosa há também cinzas e sombras nos noticiários que sinalizam maus-tratos, exploração, extorsão, cárcere privado, homicídio e ocultação de cadáver, dentre outras formas de violência. Toma-se como exemplo o adentramento de um cliente morto a um banco. A sobrinha buscava extorquir a instituição financeira, mediante uma rubrica forjada do tio falecido para fins de retirar valores decorrentes da aposentadoria. Uma cena patética, constrangedora e digna de ficção. Nessa perspectiva, pode-se estabelecer um nexo com a obra prima Incidente em Antares, de Érico Veríssimo, quando sete mortos insepultos foram ao coreto de Antares para denunciar a violência a que foram submetidos nos tempos da ditadura militar no Brasil. Assim, tanto o cliente idoso morto, quanto os mortos insepultos, denunciam que “ainda estão aqui”.

Por seu turno, a misoginia resulta em altos índices de feminicídio no Brasil. Estamos fartos de tantas agressões, denunciadas pelos meios de comunicação, na forma de estupro, esganação, facada, tiro. Mulheres sendo jogadas pelas janelas de casas e edifícios, sequestradas e mantidas e cárcere privado por meses e anos.   A Lei Maria da Penha, a propósito, surgiu justamente para tentar, por força de lei, frear atitudes tão agressivas e injustas contra meninas, moças e mulheres.

O escritor brasileiro Machado de Assis, já no Século XIX, em três magníficos contos intitulados Pai Contra Mãe, O Enfermeiro e Causa Secreta revela o caráter sádico e assombroso da sociedade carioca. Entretanto, ainda vê-se replicar o caráter sombrio e odioso no frágil Planeta Terra. Se é verdadeiro que a humanidade evoluiu para melhor, os atos de violência praticados contra a vida das crianças, mulheres e idosos não deviam estar aqui.

Os venenos parecem estar em tudo. O espírito do ódio venenoso está no ar, na terra, nos rios e no mar. Parece loucura.  O problema também é verificado nas carnes, frutas e verduras.  Os venenos também estão vitimando abelhas polinizadoras, peixes, frutas e verduras, fauna, flora e vidas humanas. Cadê os culpados?   As vítimas são visíveis. Por mais que se tente ocultá-las, ainda estão aqui. Silenciar não é preciso, esperançar por mudanças preciso é.

Autor: Eládio V. Weschenfelder. Também escreveu e publicou no site “Rios do céu e da terra”: www.neipies.com/rios-do-ceu-e-da-terra/

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MICROCONTOS

(Por Roseméri Lorenz)

Espelho Mágico

Diariamente, rolava, por horas, o feed das redes sociais:

– Todos mais belos, mais ricos, com vidas mais interessantes!

Aos poucos, a Rainha Má que lhe habitava foi ganhando espaço e pesquisando, no Google, por venenos.

Bicho Papão

Tinha medo do escuro. Por precaução, sempre olhava embaixo da cama antes de apagar a luz. Mas, ultimamente, era em vão. Na madrugada, sentia o peso no colchão. O perigo vinha do quarto ao lado.

Os Três Velhinhos

“O homem é o lobo do homem”. A frase de Thomas Hobbes nunca fez tanto sentido para Cícero, Heitor e Prático como naquela tarde. Impedidos de acessar o próprio terreno, viram suas casas irem ao chão em um sopro. Se eram de palha, madeira ou tijolos, pouco importava. A ambição do sobrinho era mais forte.

O Chapéu da Aia

Criado especialmente para ela, cobria-lhe o rosto, impedindo-lhe de ver e de ser vista. Escuro e imenso, ilustrava bem as palavras por ele proferidas, de modo solene, ao mundo. E, assim, o SÓBRIO tornou-se SOMBRIO.

Reprise 1

“PM joga homem de ponte”

“Policial é baleado na frente dos filhos”

“Carne podre da enchente é vendida como nobre”

“Trump toma posse com discurso expansionista”

“Mudanças na política da Meta autorizam discursos de ódio nas redes sociais”

Mesmo distante, pois, há tempos, havia partido, lia as manchetes e, orgulhoso, vociferava, alisando o bigodinho e o uniforme militar:

– Ainda estou aí!

Reprise 2

“PM joga homem de ponte”

“Policial é baleado na frente dos filhos”

“Carne podre da enchente é vendida como nobre”

“Trump toma posse com discurso expansionista”

“Mudanças na política da Meta autorizam discursos de ódio nas redes sociais”

De todos os lados, pernas em marcha, braços e abraços em resistência e luta, surgem membros das mais diversas artes, bradando em coro:

– Ainda estamos aqui!

Autora: Roseméri Lorenz. Também escreveu e publicou no site Um desafio ao leitor e ao escritor: www.neipies.com/um-desafio-ao-escritor-e-ao-leitor/)

Edição: A. R.

2 COMENTÁRIOS

  1. Ambos os dois escritores, com formas literárias diferentes, revelam o encanto da palavra com beleza, enquanto apontam também dores em nosso cotidiano!

  2. Excelente e inteligente texto do colega Eládio fazendo um paralelo de tantas atrocidades que infelizmente ainda estão ou melhor, “sempre estiveram aqui”.
    Também gostei muito do Micro Conto da amiga Rosiméri que com perspicácia nos remeteu aos contos infantis que nunca foram tão atuais como agora.
    Parabéns a ambos.

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