Obras belas devem circular, serem lidas, contadas, debatidas entre nós. Cartas podem ser este registro. E no futuro, servir de documentários precisos a suscitar a curiosidade e as atenções dos literatos.
Estas cartas, geralmente escritas a punho e à tinta, com letra compreensível, continham os traços de emoção e dos sentimentos que o escritor carregava no momento de sua redação. Para escrevê-las dedicava-se um tempo, um cuidado com a escolha das palavras, e com o tipo de papel e caneta. Somente após este processo, relida algumas vezes, a carta era selada, postada no correio e enviada ao destinatário. Quando recebidas, eram lidas por aquele membro da família que havia se alfabetizado e, por esta condição sabia decifrar as letras (Camini, 2012, p. 23-24)
Prezados/as, por inspiração do encontro de literatura, dia 28 de outubro, decidi vos escrever esta missiva. A tradição de escrever cartas vem desde os tempos bíblicos, entre os apóstolos. Este modo de comunicação, cruzou fronteiras e períodos históricos.
Cartas foram escritas por Eduardo e Eloisa, séc.XII, por Francisco de Assis, séc. XII, por Rosa Luxemburgo, Fernando Pessoa e Ofélia Queiroz, Antônio Gramsci, Che Guevara, Olga Benário, Francisco Julião, Isabel Allende, Paulo Freire e Anita. Nas condições em que viviam, na prisão ou exílio, ou contidos de liberdade plena, era o único meio de dar notícias à família, amigos, companheiros.
Alguns escreviam em minguadas folhas de papel, sem óculos e não lhe doía a vista. Ter um lápis/caneta era um privilégio. “Não poderás nunca medir a emoção que senti quando tive em minhas mãos as primeiras folhas de papel e os dois lápis esferográficas com que te escrevo”, disse Francisco Julião à sua filha. Se lermos essas cartas, seremos contagiados pela sensibilidade, características próprias daqueles que não soltaram a mão da humanidade, mesmo encarcerados e separados das pessoas que amavam. No seu conjunto, são verdadeiros romances de formação humana.
Em suas cartas encontramos literatura, filosofia, sociologia, história, psicologia, e muito amor. Partilhavam profundas reflexões de vida, porque separados por proibições que não guardavam sentido. Por isso, escrever cartas e trocá-las entre si era o único meio de alimentar a esperança de um dia poder reencontrar-se. Contudo, torcendo para que os proibidores destas relações, não impedissem de as cartas alcançar o seu destino.
Não por acaso, crianças das Escolas Itinerantes, escreviam cartas ao Ministério Público, ao Presidente Lula e ao INCRA. As cartas, eram portadoras de reivindicações e denúncias. Contavam os aprendizados construídos na sua escola, conectada com a vida. Em períodos de marchas, destacavam as cidades por onde passavam, as plantações, as pessoas, os conteúdos que estudavam. E porque sua escola foi batizada com o nome de Paulo Freire, seu inspirador.
Vejam, pela sua forma escolar, essa escola, incomodou o Estado. Por isso a serpente do latifúndio, que envenena terras e águas, reagiu rapidamente, e o Governo se moveu para negá-la aos Sem Terra, após 12 anos de uma linda experiência em curso. Esse latifúndio “entulha os cemitérios e as encruzilhadas dos caminhos de milhares de crianças que tinham o direito de viver”, nos diz Francisco Julião.
Recentemente nos alcançou uma obra encantadora, cujas cartas, nos levam às lágrimas – A Revolução de Anita. Soube nesse dia, que centenas de militantes sentiram profunda emoção ao lê-la, e por isso a sugeriram a alguém amigo/a. Esse amigo, não poderia, de forma alguma, eximir-se dessa leitura, tão prazerosa e significativa. Quem não a leu ainda, se quer imagina a beleza nela contida.
O mundo e a realidade que Anita descreve, com rigor e paixão, porque conviveu com camponeses dos quais nos fala, é também a realidade e o nosso mundo há quatro décadas. O que foi feito em Cuba, em 1961, está sendo feito no MST desde 1982. De lá para cá, iniciativas ousadas, em condições desfavoráveis, muitas vezes, milhares de pessoas foram alfabetizadas. Outras, estão se alfabetizando. E, muitas mais, esperam pela oportunidade de aprender a ler o mundo e poder dizer a sua palavra. E estas têm pressa. A diferença é que Cuba, forjada pela revolução, ainda contrariada pelo capitalismo, alcançou a todas as pessoas da Ilha, com planejamento, determinação e formação de brigadas de alfabetizadores, cuja dedicação e amor à Pátria, ajudaram plantar as raízes da revolução. Assim, acenderam a chama redentora na consciência do povo.
Entretanto, é preciso entender. Vivemos num sistema capitalista, gerador de exclusão. A fábrica, produtora do analfabetismo é eficaz e eficiente. Por isso, nosso trabalho deverá ser bem programado e perseverante. Cada um de nós, tem o dever de prestar atenção ao seu entorno.
Enquanto houver um analfabetizado, nossa tarefa não estará concluída. Diferente de Cuba, que havia conquistado o Estado, e por isso em condições favoráveis de construir a revolução, nós temos o Estado contra nós, produtor da desigualdade Social, de homens estraçalhados e com fome.
Por isso mesmo, o MST rema contra a maré, contra a morte, em condições desiguais, com minguados recursos para agir. Ao desenvolver projetos de alfabetização, geralmente tem pouco apoio dos governos. E quando tem, é por tempo limitado, rompendo processos e desmotivando as pessoas. Para nós, a alfabetização tem significado maior – aprender a ler, escrever e interpretar. Estudar é para a vida inteira. Nossa inspiração vem de Martí: “Só o conhecimento liberta”!
E nós, já escrevemos cartas aos nossos amigos, companheiros de jornadas, de escola, de universidade, contando qual é o nosso trabalho, militância, no MST? Como nos organizamos no trabalho de base, de alfabetização, nas escolas, nas cooperativas? Contamos o que lemos, estudamos, o que tratam as obras lidas em tempo de pandemia? Eis o desafio sugerido para enfrentarmos com mais leveza e atenção redobrada, com a nossa e a saúde dos outros. Ainda mais que não sabemos por quanto tempo o Vírus será o empecilho para darmos o voo dos pássaros.
Quando lemos algo que nos inspira e move nossas ações, não devemos aprisionar a obra em nós, deixando-a nas prateleiras, esquecida, à disposição das traças. Obras belas devem circular, serem lidas, contadas, debatidas entre nós. Cartas podem ser este registro.
E no futuro, servir de documentários precisos a suscitar a curiosidade e as atenções dos literatos. Por que não? Cartas precisam ser escritas, comunicadas, guardadas, relidas. Somente cartas, podem contrapor as palavras, mal escritas, esquecidas, tão logo chegam às telas de nossos celulares.
Fico a imaginar o conteúdo das cartas, vindas da juventude militante que carrega sua mochila nas ações de solidariedade, com o povo nas periferias. Com certeza, eu e vocês, seremos seus fiéis leitores/as. Por isso, sintam-se desafiadas a acrescentar pequenos blocos de papel e caneta nessa mochila. Anotem tudo: emoções, lágrimas, sorrisos, e palavras ouvidas de idosos, adultos e crianças. Aliás, prestem atenção maior no olhar das crianças. São elas que estão à frente, com seus olhos brilhando de felicidade ao receber a comida que esperavam. Elas esperam vocês, a fome não! Elas são criaturas merecedoras de nossa atenção redobrada, porque indefesas, vulneráveis, e, neste período, sem escola, expostas à violência que as ronda, sem lhe dar o direito de respirar sua própria infância. Esse registro em pequenos pedaços de papel, serão imprescindíveis para dar conteúdo e emoção às cartas que irão escrever. Debruçados sobre a mesa, pensem, rascunhem, reescrevam. A carta endereçada ao Antônio, Matilde, José, Pedro, Edgar, Isabela, Maria Cristina e Miguel, precisa comunicar a palavra, como se estivesse conversando, pessoalmente. Decidam a quem enviar. A pessoa que a receber, ficará imensamente feliz, e grata. A abrirá, a lerá, mais de uma vez. A carta precisa ser bem escrita, se for com o próprio punho, deve ser legível. Para ser uma carta pedagógica, nome que Paulo Freire batizara seus últimos escritos, precisa estar encharcada de pedagogia, isto é, portadora de aprendizados que comunicam, sensibilizam.
Sim, as cartas podem ter diferentes sentidos. Por isso a minha quer incentivar a escritura de cartas, e contar a vocês, um fato marcante. Em 1990 houve um grande movimento de alfabetização no RS, que se estendeu pelo Brasil. E no dia 25 de maio de 1991, tivemos a alegria de ter Paulo Freire no ato de lançamento. Dia inesquecível. Esta data demarca a primeira e única vez em que o MST se encontrou, pessoalmente com Paulo Freire, porque em 02 de maio de 1997 ele fechou os olhos para ver melhor. Em sua humildade pedagógica, se emocionou ao saber que o MST iniciava um trabalho de alfabetização nos acampamentos e assentamentos, 26 anos depois de ter sido preso e exilado por esta mesma causa, pelas mãos da ditadura. Ouviu com profundo respeito, a intenção do MST, de alfabetizar seus companheiros, e de não se dar por satisfeito até que tenha um só ser humano que não saiba ler, escrever e interpretar.
Pois bem, se esta tarefa fosse fácil, não seria para nós executá-la. O desafio é construímos possibilidades e pontes que elevem a consciência e autoestima de nosso povo. Que possam ter liberdade de pensamento e ação. E nas mãos, livros, sentir seu cheiro, abraçá-los e levá-los para casa!
Por fim camaradas, me despeço, com forte abraço a vocês, lembrando do apelo de um jovem Sem Terra/1990: “Os companheiros que não sabem ler, sofrem muito, tem limitações”. E juntos, abracemos a Anita, ouvindo sua voz: “Outro dia, o meu pai disse algo maravilhoso quando falávamos sobre a campanha. Ele disse que durante a campanha, os camponeses descobriram o mundo das palavras e os brigadistas descobriram o povo esquecido de Cuba”.