ASSEPSIAS

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O resultado desta infância asséptica é uma geração de adultos imaturos emocionalmente, sem resiliência, sem empatia, sem coragem, dependentes dos pais ou do Estado.

Tenho algumas cicatrizes de criança. Os hospitais eram longe, as benzedeiras perto. Porém, dez filhos vezes cinco choros por dia é igual a cinquenta idas à benzedeira. Muito para uma só mãe. Um abraço e um assopro – Deus na criação – curava tudo, ou quase. Foram-se as feridas, ficaram as cicatrizes. Cicatrizes são apenas histórias plásticas e indolores.

Meus irmãos e eu nascemos em casa. Minha mãe gostava de exibir seu ventre sem cortes. Achava virtude sua.

Tempos em que andar descalço era comum. Desde bebê. E os calos das solas, depois, tornavam-se proteção contra pontas de pedras e espinhos.

Meus pais não tratavam pequenas dores como parte da vida. E os medos também. Aliás, meu pai contava muitas histórias assustadoras, sem dó nem piedade.

Agora são tempos de antidepressivos. Curingas emocionais. Trocam-se frustrações por pílulas, amores por pílulas, mortos por pílulas, sonhos por pílulas, notas baixas por pílulas, contas por pílulas, dúvidas por pílulas…*

A dor anda estigmatizada pela anestesia. Heróis sofredores já não seduzem ninguém com sua fortaleza. Popularizaram-se os analgésicos, os hospitais, os médicos, os especialistas, as cesarianas. Benzedeiras são falsas, as parteiras perigosas, as mães ignorantes. Uma nuvenzinha de dor no horizonte, chamamos o helicóptero. Com tantos diagnósticos precoces e eficazes, é fútil a função orgânica da dor.

A assepsia do medo também invade as casas e as escolas. Há pouco, um programa do Ministério da Educação fez chegar às crianças contos de fadas sem bruxas, sem monstros, sem maldade. A única maldade é com a infância, olhada como se fosse uma falha da vida. 

Se a vida não é isenta de dores e medos, por que não preparar nossos filhos para isso? O resultado desta infância asséptica é uma geração de adultos imaturos emocionalmente, sem resiliência, sem empatia, sem coragem, dependentes dos pais ou do Estado.

Os pais e mães de hoje se desesperam ante qualquer dorzinha do filho. Se chora ou não dorme, se arrotou diferente, se o xixi aumentou, soará o celular do pediatra. E o sangue, então? Partem em desespero para o pronto- socorro mais próximo. Um assopro nem seria cogitável. Ficam tão angustiados que perdem o fôlego.

Não sou advogado da dor. Não. Jamais. Da dor física, nunca. Não defendo masoquistas, nem sádicos.

O problema é que a anestesia para o corpo contaminou a alma. Ninguém mais tem coragem de amadurecer suas dores, ninguém mais está preparado para seus ferimentos, suas pequenas e necessárias cruências interiores.

 Coincidência. Médicos da alma são os mesmos do corpo. Fez-se da alma um órgão ou um membro esmiuçado em alguma especialidade. Nela, parece, tudo se cura com um mesmo remédio: eritema, equimose, feridas, fraturas, tumores.

Graças às descobertas científicas, os meninos de hoje não precisarão levar para o futuro cicatrizes corpóreas. Com as cirurgias plásticas, um ventre sem corte não ensejará virtude ou coragem.

Quanto às dores e medos da alma, contudo, uma pílula curinga não parece ajudar. Quem sabe, para a alma, valha mesmo a ciência das benzedeiras, das parteiras e dos pais assopra-dores. Cicatrizes e calos, no corpo ou na alma, são escudos para a vida.

  • *Nota: Ressalvo casos em que a medicação é necessária para evitar danos maiores a si ou aos outros. Minha crítica é a uma simplificação do uso, ou, em alguns casos, ao uso indiscriminado sem acompanhamento médico.

Autor: Pablo Morenno

Editor: Alex Rosset

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