Aula de língua-vida

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Por que existe
língua portuguesa na escola?
Esteja certo que não é para
ensinar a língua, pois o aluno já sabe.
Ela deve servir para refletir o seu uso.


Numa tarde ensolarada de quarta-feira, estava eu com uma turma de Primeiro Ano do Ensino Médio trabalhando as convenções da escrita, numa das que considero uma das melhores turmas do Instituto Cecy Leite Costa, depois de algumas aulas anteriores ter discutido e refletido sobre a linguagem oral e a linguagem escrita.

Qual a postura que devemos ter ao usarmos a língua diante de uma linguagem e outra? Elas são diferentes?

Passamos pela reflexão sobre as redes sociais. Nas redes sociais usamos a oralidade, ou a escrita? Se estamos escrevendo, poderemos transcrever a fala, visto que usamos a escrita para a comunicação?

Poderia ser somente mais uma quarta na vida de um professor, que procura sempre trazer a reflexão da língua em uso, porém não foi. Porque nesta aula estava presente o aluno chamado Gustavo da Costa Gil e depois de toda essa sequência didática de reflexões linguísticas, já no final da aula, ele me questionou, através do chat, visto que estávamos numa aula na plataforma Google Classroom: – Professor, o que você acha sobre linguagem neutra.

Eu, sem muito pensar, respondi que linguagem neutra não existe.

Gustavo me interrompeu e tentou explicar: – É que assim professor, na internet e em outros escritos as pessoas usam, exemplo, brasileiro ou brasileiros, você tira o “o” e coloca um “e”, ou um “x” que dá a interpretação que não tem um gênero definido, para uma pessoa “cis” ou não binária, isso é importante. Isso mudaria muito a linguística, no quesito linguagem escrita?

Retomei a palavra e disse que, na verdade, então eu não tinha entendido muito bem o que ele quis dizer com linguagem neutra porque a neutralidade não existe, linguagem neutra não é possível de ser concebida porque qualquer palavra que eu utilizar eu já não estou sendo neutro e eu tinha entendido por esse lado.

Continuei dizendo que na verdade o que ele tinha me perguntado não tem nenhuma neutralidade, aliás, quando você usa na linguagem escrita um “x” você está sendo muito ideológico, porque isso representa uma questão de respeito com as pessoas que não se sentem de dois gêneros, entre o masculino e o feminino. Nesse sentido, a linguagem também vai modificando.

Vocês viram no texto que trabalhamos, de 1500 para cá tudo vai mudando, porque as coisas, as inovações impulsionam a sociedade e a linguagem muda, pois é a língua em uso na sociedade, assim, conforme os costumes, as coisas vão mudando, os valores, a linguagem vai acompanhando. E o que eu, enquanto linguista, posso dizer que isso é uma tentativa de contemplar algumas pessoas, que é legítimo àquelas que não se sentem do gênero binário. Ah, você é mulher, ou não, você é homem. Isso é para considerar.  Porque você sabe que na língua qual gênero predomina nas regras? O masculino. 

Portanto, aquele “x” é para dizer que eu estou abarcando todo gênero possível, é a diversidade de gênero. Isso vai acabar sendo aceito pela convenção de uma comunidade linguística e quando isso acontece a escrita muda. Gustavo, e essa linguagem não é neutra.  Isso demonstra que os jovens estão atentos e eu fico muito feliz, por você me fazer essa pergunta na minha aula de português, na qual estamos trabalhando a reflexão das convenções da escrita. O aluno contribui com minha fala dizendo que ele entendeu e inclusive concordava comigo.

Retomo a fala e digo que ninguém precisava concordar comigo, mas que nós, Gustavo, principalmente, vocês da geração mais jovem, que já têm uma mente mais aberta têm de respeitar essa linguagem e, inclusive, aderir a essa escrita, porque quem somos nós para julgar ou tachar um enquadramento linguístico?

Nada mais justo que colocar um X que respeita todos os gêneros e que essas pessoas se sentem incluídos, num momento que clamamos tanto por inclusão, pois nós já passamos por muita exclusão neste país e no mundo.  Não é possível que a gente continue excluindo?

Gustavo me toma a palavra para me deixar de boca caída: – É professor, como o senhor disse, é possível a mudança das nossas regras e eu acho que seria bem aceito também essa mudança, porque como a nossa língua se utiliza muito de gênero, principalmente, o masculino, coisa que em muitas outras línguas não há, não faz tanta diferença, por isso, a base pode ser desconstruída e pode ser fragmentada em vários horizontes. Isso poderá até facilitar o uso da língua portuguesa.

Com essa lição, reforço, portanto, que essa é uma verdadeira aula de linguagem, língua em uso, língua-vida, pois é aula que ajuda o estudante a refletir sobre sua língua.

Por que existe aula de língua portuguesa na escola? Esteja certo que não é para ensinar a língua, pois o aluno já sabe. Ela deve servir para refletir o seu uso. Poderia ser mais uma quarta, não foi. Foi o inverno que se transformou em primavera.

1 COMENTÁRIO

  1. Lendo seu texto colega ( Língua – vida), parei para refletir, pois me senti diante de um professor inovador e desafiador, que leva seus alunos além, despertando- lhes curiosidade e incentivando- os a questionar sobre o uso real da língua no cotidiano.

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