Autoridade docente na modernidade líquida[1]

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Qual o futuro da escola e da docência numa cultura marcadamente consumista? É possível construir processo de autonomia na escola quando esta é invadida pela lógica de mercado? O professor tem diante de si um aluno que se compreende como indivíduo ou como consumidor, alguém que simplesmente obedece ou constrói processos de autonomia?

Modernidade líquida é a metáfora de Bauman (2010) para explicar e compreender a sociedade contemporânea. A modernidade, enquanto projeto, buscou a consolidação de uma sociedade estável, sólida, livre de desgraças e desvios, uma constituição perfeita da organização social. O horizonte moderno não realizado de um progresso linear para tudo, confirma que o projeto não terminou, mas ingressou numa outra fase, definida por Bauman (2010) como modernidade líquida, ou seja,“aquela forma emergente de vida, aquela forma que era moderna de uma maneira radicalmente diferente daquilo que havíamos testemunhado (e que havíamos participado) antes” (Bauman, 2010, p. 12).

Na modernidade líquida (Bauman, 2010), a educação passou a ser compreendida como uma antessala ao mercado de trabalho. Diversos países como explica Nussbaum (2015) tem orientado suas reformas educacionais em todos os níveis para o trabalho e de acordo com as habilidades profissionais, que não são de longo prazo, mas voltadas para a aprendizagem de hábitos para o tempo imediato. Esse fator também está diretamente ligado à descentralização da autoridade docente, haja vista que o professor acostumado a trabalhar numa perspectiva de uma educação para toda a vida depara-se com as exigências do mercado de uma aprendizagem ao longo da vida e que leve a mudanças constantes dos hábitos dos indivíduos. 

Nesse novo cenário educacional àquilo que era tido como “um corpus bem definido e logicamente congruente de destrezas e hábitos adquiridos, com a experiência que só o ‘longo tempo’ poderia fornecer, não é mais visto como vantagem no corrente sistema produtivo” (Almeida; Gomes; Bracht, 2009, p. 66). Isso significa que, os sujeitos precisam estar preparados para a flexibilidade, ou seja, saber abandonar com rapidez hábitos do presente para que haja adaptação imediata aos novos. As novas exigências do mercado, entretanto, colocam em xeque a própria necessidade do docente, pois “a formação profissional a curto prazo, orientada diretamente aos empregos e obtidas nos cursos flexíveis e em equipe de aprendizagens autodidatas, são muito mais atraentes do que a educação à moda antiga” (Almeida; Gomes; Bracht, 2009, p. 67, grifo nosso).

Desse modo, o docente, a escola e a universidade não possuem mais o saber “sagrado” a transmitir, já não são mais infalíveis e, por consequência, a relação com o conhecimento também muda diante dos projetos de caráter flexível e efêmero. Os alunos não devem apegar-se ao conhecimento, e muito menos seguir comportamentos por ele propostos, pois foi transformado em informação, e a velocidade com que as informações chegam e “somem” é enorme.

O próprio conhecimento torna-se descartável, passível de ser jogado fora e substituído. O conhecimento que é traduzido como informação “guarda relação com o hábito de tomar café: só é bom quando forte e quente, esfriando rapidamente antes que seu gosto possa ser saboreado e avaliado por completo” (Almeida; Gomes; Bracht, 2009, p. 68). Mas, o quê assume o lugar do conhecimento? E quem assume o lugar do professor?

Na modernidade líquida os conselheiros que apresentam várias possibilidades de seguir na vida são melhores quistos que o professor preocupado em oferecer uma única opção, já bastante congestionada. Esses conselheiros, na visão do Bauman (2010), sustentados pela sociedade de consumo, apresentam-se com mecanismos de sedução em substituição à repressão de outros tempos mais sólidos. O poder de repressão da escola moderna sólida é substituído pelo da sedução, pelas vias da sociedade de consumo e o docente já não possui tanta força de determinação e nem consegue seduzir. Os conselheiros, segundo Almeida, Gomes e Bracht (2009, p. 69 – grifo dos autores) “em suas interpretações do ‘bem viver’, oferecem àqueles que os procuram o saber fazer, ser ou viver, não ‘o saber’ que os professores da modernidade sólida pretendiam divulgar e eram bons em transmitir, de uma vez por todas, aos seus alunos”. A autoridade docente entra, desse modo, numa crise profunda com todos esses elementos, que provocaram na modernidade líquida o aparecimento de muitas outras fontes de autoridade.

Nesses novos tempos maleáveis e reconfigurados, a escola não é mais o único espaço de aprender e adquirir a cultura ideal e o professor não é mais a única autoridade para ensinar. A aquisição de conhecimentos, habilidades e atitudes está bastante pulverizada, vários agentes da sociedade educam, ensinam, treinam, preparam as pessoas.

Numa ótica de formação enraizada nos vários aspectos da vida humana, seria extremamente saudável que os vários espaços sociais educassem e ensinassem. Por outro lado, corre-se o risco de um relativismo extremo, onde tudo passa a contar como educação, como experiência formativa do ser humano. É por este viés, que Bauman (2010) alerta que os espaços da sociedade líquida, onde a todo o momento se aprende e desaprende, podem estar operando numa lógica mercantil que não necessariamente leve em consideração a complexidade do humano como o centro do processo formativo.

Talvez o ponto nevrálgico apontado por Bauman (2010), com relação à descentralização da autoridade docente, é que, as novas fontes de autoridade estão estreitamente orientadas pela dinâmica do mercado. Na modernidade líquida, o mundo do trabalho, importante espaço de construção da identidade humana e de formação, é substituído pelo artefato do mercado de trabalho “que agora toma a si o papel de juiz, de formulador de opinião, de verificador de valores, […], os intelectuais foram desalojados até na área que por vários séculos parecia constituir seu domínio monopolista de autoridade – a área da cultura em geral” (Bauman, 2010, p. 172). A antiga aliança dos intelectuais com o Estado ordenador, com capacidade de legitimar e universalizar o discurso sobre a verdade, o gosto, passou para o mercado e seu poder legislador de formador de opiniões e valores, bem como de critérios para o bem e para o mal, beleza e feiura, sucesso e fracasso dentre outros. Há de se considerar, entretanto, que no mercado não há um centro de poder único e nem existe a pretensão de criá-lo, pois o que define a hierarquia é a notoriedade e o quanto algo que é pronunciado é notado e seguido por outras pessoas: “falam de mim, logo existo!” (Almeida; Gomes; Bracht, 2009, p.70).

A já desacreditada autoridade docente em conduzir a lógica da aprendizagem, disputa sem muitas chances de vitória, com as sedutoras e atraentes mensagens dos novos famosos, artistas, esportistas, políticos, outsiders, enfim, dos chamados formadores de opinião. É bom recordar que estes atores induzem a formação de opinião, mas não necessariamente a construção e desenvolvimento do conhecimento, que é uma tarefa central do professor. 

Ocorre que, o docente, antes pertencente a um sistema escolar formal rígido e coletivo quanto a sua formação e estrutura, agora está diante da privatização dos processos de formação e sua subordinação ao mercado, ao trabalho e a múltiplas vozes que se auto intitulam autoridades dispostas a educar e tornar as pessoas mais felizes e bem-sucedidas. Tudo isso nos aponta que o slogan “educação para toda a vida” da modernidade sólida está em crise, juntamente com o ideal de autoridade docente gestado na escola moderno-sólida e, emerge assim, uma perspectiva de “educação ao longo da vida”, que em tempos moderno-líquidos exige novas reflexões acerca da autoridade docente. Sobre isso dedicar-se-á o próximo tópico.

Como bem descreveu Bauman (2010), da mesma forma que o discurso intelectual se deslocou da tarefa de legislar para a de interpretar, o discurso formativo da escola passou por consequências inesperadas, pois está frente a um imenso desafio existencial: como oferecer uma aprendizagem para toda a vida se a todo momento são exigidas novas habilidades, conhecimentos e atitudes em uma realidade de constantes transformações, literalmente em estado líquido contínuo? O que expomos até aqui não é nada empolgante para o sistema escolar e para o modelo de autoridade docente tradicional, já que, os conhecimentos são rapidamente desvalorizados e descartados; as biografias pessoais e projeções profissionais para o futuro atravessam profundas incertezas e inseguranças.

As instituições tradicionais como a escola e a universidade passam por lamaçais de precarização pelas reformas sociais e econômicas promovidas pelo mercado, que submetem os indivíduos à lógica do consumo globalizado.

Nesta trilha de problematização, outros questionamentos poderiam ser apresentados: qual o futuro da escola e da docência numa cultura marcadamente consumista? É possível construir processo de autonomia na escola quando esta é invadida pela lógica de mercado? O professor tem diante de si um aluno que se compreende como indivíduo ou como consumidor, alguém que simplesmente obedece ou constrói processos de autonomia? São questionamentos importantes que não podem ficar de fora do atual cenário que os professores encontram no cotidiano escolar. A compreensão conceitual destas problemáticas se torna importante para que nossas ações sejam conscientes e educativas. A educação não se faz com entusiasmo ingênuo ou com doses inflacionadas de otimismo descontextualizado. Processos educativos se fazem com lucidez, conhecimento e consciência da realidade que se apresenta. Tem essa lucidez fará toda diferença.

Para os que desejarem aprofundar a discussão deste texto indico o artigo completo: https://www.researchgate.net/publication/343448167_A_dialetica_entre_a_normatizacao_e_a_interpretacao_a_autoridade_docente_na_modernidade_liquida_de_Bauman

Referências:

ALMEIDA, Felipe Quintão; GOMES, Ivan Marcelo; BRACHT, Valter. Bauman e a Educação. Belo Horizonte: Autêntica. 2009. 

BAUMAN, Zygmunt. Legisladores e Intérpretes:sobre modernidade, pós-modernidade e intelectuais.Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.2010.

FÁVERO, Altair Alberto; CENTENARO, Junior Bufon. A autoridade docente na modernidade líquida. In: FÁVERO, Altair Alberto; TONIETO, Carina; CONSALTÉR, Evandro (orgs.). Leituras sobre Zygmunt Bauman e a Educação. Curitiba: CRV, 2019, p.81-99.

FÁVERO, Altair Alberto; CENTENARO, Junior Bufon. Dialética entre a normatização e a interpretação: a autoridade docente na modernidade líquida de Bauman. Educação em Questão, v.57, n.52, abr./jun., 2029. Disponível em: https://periodicos.ufrn.br/educacaoemquestao/article/view/15883

[1] Uma versão modificada deste texto foi publicada como parte de um artigo de Fávero e Centenaro (2029) que saiu na  e também em partes de uma artigo publicado na Revista Educação em Questão.

Autor: Altair Alberto Fávero – altairfavero@gmail.com Professor e Pesquisador do PPGEdu UPF. Este é a sua octagésima publicação no site. Também escreveu e publicou “Educação contra barbárie”: www.neipies.com/educacao-contra-a-barbarie/

Edição: A. R.

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