Alvaro Machado é passofundense, médico oncologista e está, há 30 anos, à frente de uma luta por mais saúde, através de processos de cura de uma das doenças que mais mata no mundo: o câncer. Saiu de Passo Fundo aos 17 anos para iniciar a faculdade de medicina e retornou aos 30. Casado com a médica Mariangela Pecly, carioca, eles tem dois filhos.
O câncer é a segunda doença em incidência e a segunda em mortalidade, com tendência a ser a principal no final desta década.
Conversar de forma aberta, com transparência de informação, com conhecimento de causa desta doença faz-se sempre necessário e urgente. Se não podemos evitar tudo, podemos, ao menos, conviver com esta doença e conhecer caminhos para evitá-la ou minimizá-la.
Conhecer sua trajetória de médico, seu envolvimento com a especialidade da oncologia, avaliar as situações da doença na atualidade, bem como falar e promover prevenção serão os objetivos de nossa entrevista.
Conheçamos Alvaro Machado, por ele mesmo.
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SITE NEIPIES: Doutor Alvaro, como quando e porquê decidiste ser médico?
Dr. ALVARO MACHADO: Não lembro de ser uma decisão ou projeto pensado e trabalhado. Das alternativas que se apresentavam na época de vestibular, a medicina me era mais simpática. Havia o desejo de pai e mãe, não tínhamos médicos na família, tudo era muito idealizado. Eu tinha a imagem, idealizada, do meu pediatra, Dr. Telmo Ilha, e Dr. Firmino Duro, amigo da família. Durante o curso de medicina a realidade é outra: limitações tecnológicas, orçamentárias na saúde, na educação, médicos empregados, mal remunerados, professores dedicados e outros nem tanto, pacientes anônimos. Nesta época, oncologia não era especialidade reconhecida pelo CFM e AMB. Raros programas de residência médica. E os recursos terapêuticos também escassos. Mas algo me atraiu no desafio. Foram 2 anos de Medicina Interna na Santa Casa em Porto Alegre e, na sequência, mais 3 anos de Oncologia no INCA (Instituto Nacional do Câncer) no Rio de Janeiro.
Minha formação foi na rede pública. Depois passei 2 anos no topo do serviço privado brasileiro, Hospitais Albert Einstein e Sírio-Libanês, em São Paulo. Tudo mudou frente aquelas duas realidades distintas. Atualmente predomina um intermediário (planos de saúde ou o poder público) na relação médico-paciente. Precisamos de muita atenção e cuidado para não projetar as dificuldades desta situação na figura do paciente.
SITE NEIPIES: O que mais te realiza e o que mais te desafia como profissional da área médica?
Dr. ALVARO MACHADO: A realização é poder ajudar, vencer vários desafios e perder outros, mas sempre solidário e empático, sendo reconhecido por isso. Ao mesmo tempo vejo que a atuação individual é limitada. O cuidado do paciente, principalmente oncológico, demanda atenção multiprofissional e interdisciplinar. Este foi o motivo de levar adiante a ideia do CTCAN, clínica da qual sou sócio e idealizador. Conseguimos, com uma equipe treinada e dedicada, elevar a atenção ao paciente com câncer a outro nível de segurança, conforto e satisfação.
Somos pioneiros na obtenção dos selos de Acreditação da ONA nível 1 e nível 2 Pleno. Mas quando entendemos que a solução dos problemas de saúde, em sua dimensão populacional, é questão de política de estado, políticas públicas, um tanto de frustração acompanha nossa caminhada. Em 2016, o então vice-presidente Biden dos EUA discursou no congresso anual da ASCO (American Society of Clinical Oncology) lançando o programa Moonshot, um enorme investimento governamental para pesquisa do câncer, foi um grande entusiasmo na comunidade médico-científica. É a partir desde tipo de iniciativa que avançamos, pois estas pesquisas irão beneficiar a todos, em algum tempo.
O poder público é fundamental no desenvolvimento de soluções dos problemas da sociedade. Seja câncer, seja pandemia, seja poluição, seja tempo para saúde, lazer e cultura.
SITE NEIPIES: Como és especialista em câncer, comecemos a falar da doença. Por que temos tanta incidência de câncer na vida de homens e mulheres? Aumentaram os fatores de risco?
Dr. ALVARO MACHADO: Primeiro devemos considerar o envelhecimento da população. O tabagismo, apesar de estar diminuindo, ainda é o mais importante fator de risco. Alimentação, sedentarismo, álcool, exposição solar excessiva e muitos outros hábitos de vida, além da poluição do ambiente, ar, água, alimentos, tudo isto colabora em algum grau. Consideramos que 60% dos casos de cânceres são “sorteios da natureza”, ao acaso. Outros 5 a 10% tem forte componente hereditário, que podem ser minorados. Os 30-35% restantes poderiam ser evitados com hábitos e ambiente saudáveis.
SITE NEIPIES: Câncer de mama e câncer de próstata são os mais lembrados nos últimos meses do ano. Por que o Outubro é Rosa e o Novembro é Azul? (Campanhas)
Dr. ALVARO MACHADO: O Outubro Rosa nasceu nos EUA com a primeira caminhada das “vencedoras”, mulheres sobreviventes do câncer de mama, no início dos anos 90, época em que falar a palavra câncer era tabu. Esta campanha cresceu e se tornou modelo para todas as outras que chamam nossa atenção para doenças importantes e passíveis de prevenção ou intervenção precoce. O Novembro Azul veio neste embalo, chamando a atenção para o câncer de próstata e saúde do homem, da mesma forma que o câncer de mama, o mais incidente e que mais mata mulheres, o câncer de próstata é o mais incidente e segundo câncer mais letal entre os homens, perdendo para o câncer de pulmão.
Os números do câncer são impressionantes na população: cerca de 660.000 mil diagnósticos ao ano, 66.000 de câncer de mama e 65.000 de câncer de próstata. Morrem mais de 200.000 brasileiros ao ano pela doença. Um terço de todos os casos são evitáveis. Isto significa que poderíamos evitar cerca de 200.000 casos por ano e 60.000 mortes.
SITE NEIPIES: Quais são as diferenças na percepção das mulheres e dos homens com relação aos seus corpos? Esta diferença interfere na descoberta, tratamento e cura do câncer?
Dr. ALVARO MACHADO: As diferenças são enormes. Fortemente influenciada por fatores culturais, regionais e de condições socioeconômicas. Na clientela privada, as mulheres desenvolvem durante sua vida uma rotina de cuidado médico, pois mal abandonam o pediatra e já estão sendo acompanhadas pelo ginecologista, mesmo sem estarem doentes. O homem não tem isto. Após o pediatra, procura o médico quando fica doentes. Esta mentalidade vem mudando entre os mais esclarecidos e aqueles que tem acesso aos serviços de saúde. Na rede pública isto se acentua de forma dramática. O acesso aos serviços é mais difícil, o acesso à informação também. Afora que boa parte da população menos favorecida está numa luta diária pela sobrevivência, não tem como pensar em prevenção.
A cura depende muito do diagnóstico precoce e do acesso aos tratamentos ideais em tempo hábil. Isto implica em políticas de rastreamento (diagnóstico precoce) e uma rede de atenção com especialistas e tecnologias modernas (tratamento ideal em tempo adequado) capaz de absorver estes pacientes e trata-los o mais breve possível.
SITE NEIPIES: O que é prático, viável e importante na prevenção do câncer?
Dr. ALVARO MACHADO: Podemos resumir em hábitos saudáveis de vida. Não fumar, ter alimentação saudável, praticar exercícios físicos regularmente, reduzir a ingesta de álcool ao mínimo, manter o peso ideal. Parece simples, mas quando pensamos na implementação destas medidas em âmbito populacional, esbarramos em obstáculos dificílimos. Por exemplo: alimentação saudável significa alimentos in natura, orgânicos, de preparo artesanal e exercícios físicos regulares, segundo a ACS (American Cancer Society) significa 1 hora de atividade moderada 5 dias por semana.
Da forma que estamos organizados socialmente, com carga horária de trabalho, tempo gasto em deslocamentos do e para o trabalho e mais o trabalho em casa despendido para a família, vemos que dificilmente conseguiremos implementar estas medidas sem que existam diretrizes e políticas públicas que garantam alimentos de qualidade a custo razoável, jornadas de trabalho que permitam tempo para os cuidados individuais e da família, etc. E estamos falando em manter a saúde. Se estendermos este conceito com a necessidade de lazer e cultura, aí complicou mesmo.
SITE NEIPIES: A pandemia está escondendo, camuflando ou retardando os diagnósticos de câncer? Como o Senhor vê isso?
Dr. ALVARO MACHADO: Sim. A pandemia vai piorar nosso desempenho, que já era sofrível. O número de mamografias realizadas em nossa cidade é um espelho desta realidade. A OMS estima que é necessário pelo menos que 70% das mulheres em idade de rastreamento para o câncer de mama realizem a mamografia anual para termos impacto sobre a mortalidade na população. Em 2017 Passo Fundo realizou cerca de 20% das mamografias necessárias na rede pública, já descontando a população feminina com acesso à rede privada. Este foi nosso melhor desempenho nos últimos muitos anos. Em 2018 fizemos 17% dos exames necessário. Em 2019, 12%. Este ano, 2020, não chegaremos a 10%. Isto é sinônimo de diagnósticos mais tardios e vidas perdidas. Afora isso, nos próximos meses teremos uma avalanche de pessoas, que não procuraram ou não foram atendidas nos meses passados, buscando o sistema público de saúde que já esta saturado, sem condições de absorver esta demanda reprimida pela pandemia. Sempre lembrando que em 2016 foi aprovado, com voto do Bolsonaro, o congelamento dos gastos públicos em saúde.
SITE NEIPIES: Por que as recorrentes dificuldades de acesso aos diagnósticos do câncer ainda não estão resolvidos? Falta o que?
Dr. ALVARO MACHADO: Educação, planejamento e investimento. Mamógrafos temos em excesso no Sudeste e Sul, faltando no Norte e Centro Oeste. Os especialistas se concentram nestas mesmas regiões. Aparelhos de radioterapia também. O poder público deve priorizar e investir nas áreas carentes.
SITE NEIPIES: Já é possível afirmar que os tratamentos (quimioterapia e radioterapia) para controle e cura do câncer já estão mais humanizados?
Dr. ALVARO MACHADO: Os tratamentos todos tem evoluído exponencialmente, tanto a cirurgia, a radioterapia e os medicamentos, não apenas a quimioterapia. As cirurgias tem se tornado menores, menos mutilantes, mais preservadoras de função e com excelentes resultados estéticos, sem perder efetividade. Estamos numa nova era, com tecnologia para entender cada vez em maior detalhes o que está errado na célula do câncer e, assim, desenvolver medicamentos específicos para “corrigir”ou “desligar” esta alteração. Assim como estamos aprendendo os mecanismos de controle do sistema imune e desenvolvendo medicamentos que estimulam, treinam e tornam nossa imunidade mais eficaz e específico contra o câncer. Mas isto tudo tem um custo alto.
Devemos focar na prevenção e diagnóstico precoce. Para queles que precisam, o tratamento atual é muito mais eficaz e muito mais bem tolerado, permitindo um cotidiano normal para muitos.
SITE NEIPIES: Sairemos, sem saber quando, da pandemia e da sua maior consequência: o isolamento físico e social. Sairemos melhores como sociedade? O que estamos aprendendo?
Dr. ALVARO MACHADO: Sou um otimista. Penso que aprendemos que a solidariedade e empatia são vitais para nossa preservação como sociedade e como espécie. Li, recentemente, de uma antropóloga, que o primeiro sinal de civilização foi um fóssil de fêmur quebrado e cicatrizado. Seria impossível, sem cuidado de outro, qualquer animal com fêmur fraturado sobreviver. Seria presa fácil. Então é isso, civilização é solidariedade e cuidado com o outro.
Por outro lado, a humanidade enfrentou a gripe espanhola e duas grandes guerras mundiais. Tragédias imensuráveis. Saímos melhores delas? Acho que em alguns aspectos sim. A história não é linear ou espiral contínua, temos altos e baixos, avanços e retrocessos. Mas me parece que avançamos para melhor.
SITE NEIPIES: Uma frase/ideia ou pensamento que expresse algo significativo e relevante sobre tua vida.
Dr. ALVARO MACHADO: Bah, nunca pensei nisto. Nenhuma e muitas me ocorrem agora. Não saberia qual mais significativa neste momento, pois a vida é multifacetária e se transforma continuamente, podendo não caber em uma frase ou pensamento.
SITE NEIPIES: Uma mensagem aos que te lêem agora.
Dr. ALVARO MACHADO: Mantenham o cuidado, distanciamento social, máscara e higiene. Ano que vem chegam as vacinas e tudo começa a melhorar. Incorporem, na medida do possível, hábitos saudáveis. Sedentarismo e obesidade já são a principal causa de câncer nos EUA, ultrapassando o tabaco.
E não poderia deixar de reforçar: escolham como representantes nas eleições aqueles que apoiam a educação, os professores, a ciência e a pesquisa. Isto pode mudar o mundo.
Conheça o CTCAN: https://ctcan.com.br/