Massacre que deixou dez mortos
em uma escola pública de Suzano, em São Paulo,
ressalta a importância do papel da escola em
ajudar os estudantes a lidar com a morte.
Morte: um tema sobre o qual ninguém gosta de falar, embora as circunstâncias dela sejam próprias da vida. Quando esse assunto envolve um massacre, então, como o que ocorreu em uma escola em São Paulo, neste mês de março, com tamanha violência, é ainda mais complicado lidar com a morte e com o luto. A escola, em especial os professores, têm um papel fundamental para tornar a dor dos seus alunos um pouco mais suportável. Espaços de escuta e de exposição do tema são fundamentais, já que o luto provoca um impacto emocional importante e os desajustes psicossociais costumam se manifestar também no ambiente escolar.
Cada fase da vida é caracterizada por um instrumental cognitivo, emocional e cultural para conceituar, entender e lidar com a morte. De acordo com a coordenadora do projeto de extensão da Universidade de Passo Fundo “Clínica de estudos, prevenção, intervenção e acompanhamento à violência” (Cepavi), doutora em Psicologia, professora Ciomara Benincá, o entendimento da morte é difícil em qualquer fase da vida das pessoas, mas crianças muito pequenas, por ainda não dominarem conceitos básicos que envolvem a morte e o morrer, como a irreversibilidade, a universalidade e a inexorabilidade, tendem a perceber a morte como um estado transitório que pode ser revertido a qualquer momento.
A partir dos cinco anos, a criança começa a compreender que a morte não pode ser revertida. “Em torno dessa idade, embora a criança não tenha plena clareza do que se trata, ela começa a entender que quem morreu não vai mais voltar e, mesmo sabendo que seres vivos morrem, ainda tem dificuldade para considerar a morte dos que ama”, comenta Ciomara.
Na adolescência, mesmo que muitos indivíduos nessa fase vivam como se fossem imortais e onipotentes (é o caso do comportamento de risco e da ideia adolescente de que nunca nada de ruim vai acontecer a eles), ocorre o último estágio de entendimento, que seria quando as pessoas começam a entender e considerar a própria morte e não só a morte do outro.
No caso do massacre da escola em Suzano, que deixou dez mortos, o principal complicador é a violência desmedida e o nível de vulnerabilidade em que a escola como um todo foi colocada. “Sangue, ódio, doença mental não combinam com o espaço escolar, pois nenhum dos atores envolvidos está preparado para defender-se de assassinos naquele que é um ambiente de crescimento e desenvolvimento. Alia-se a essa vulnerabilidade a dor de perder pessoas queridas precocemente. É uma situação sempre muito difícil de lidar, mas que deve ser encarada de frente no coletivo com muito acolhimento, compreensão e apoio, pois feridas não cicatrizadas tendem a se tornar uma doença muito mais grave e incurável”, ressalta a coordenadora do Cepavi.
É preciso falar sobre a morte
A morte e o luto não podem ser tratados como tabus. “Quando existem assuntos que são tabus, sobre os quais a escola se recusa a tratar, a criança passa a sentir-se inadequada diante dos próprios sentimentos e da necessidade de expressá-los. Daí começam a aparecer mudanças bruscas de comportamento como forma de manifestar que algo não está bem”, observa Ciomara.
Falar é sempre a melhor solução. Conforme Ciomara, somente é possível falar de morte quando também é possibilitado falar de vida: uma não existe sem a outra. “É preciso criar um espaço de escuta para falar dos mais diversos assuntos que povoem o mundo infantil, inclusive os mais difíceis, como perda, morte e luto”, enfatiza a professora.
O tema deve ser discutido ao longo da vida e não apenas quando casos de morte acontecem. Segundo a professora, abandonar as pessoas sozinhas com a sua dor é equivalente a uma segunda morte, que é a morte social de alguém que se sente incompreendido e inadequado. “Esse é um processo que não necessariamente deveria ser iniciado com uma tragédia, mas a partir da discussão das pequenas perdas que ocorrem ao longo da vida, desde a perda do colo da mãe, da exclusividade na família com a chegada de um irmão e até dos próprios dentes que precisam morrer para nascerem outros mais fortes e definitivos. É com os pequenos simbolismos do dia a dia que se introduz um assunto tão delicado e fundamental como esse”, informa a coordenadora do Cepavi.
O tema deve iniciar-se no seio familiar desde muito cedo. Ciomara enfatiza que a família, inserida no contexto sócio-histórico, disponibilizará estratégias psicossociais características da época em que vive, mas também oriunda de conceitos e vivências que são típicas da história familiar com as suas dores, medos e lutos.
O papel da escola
Nesse contexto, a escola pode agir como um agente de saúde mental na medida em que continua criando espaços de fala e de reflexão sobre a vida e a morte, muitas vezes auxiliando a própria família sobre os caminhos possíveis para exercitar essa prática.
O professor tem um papel fundamental nesse processo. Cada profissional terá uma forma pessoal de agir e expor o assunto com seus alunos. “A disponibilidade do professor para acolher a dor do aluno está diretamente relacionada com a forma como vivencia as suas próprias dores. Nesse sentido, não há como exigir que o professor aja naturalmente como se devesse ser o lado mais forte quando ele mesmo não se sente preparado nem fortalecido para isso”, revela Ciomara.
A melhor forma é acolher o aluno e respeitar a sua dor, se colocando à disposição no que for preciso. “Precisamos entender que morte e perdas são assuntos difíceis independentemente da idade ou da fase da vida em que ocorram. Elas estão relacionadas com as condições psíquicas de cada um, a sua própria história de luto e as estratégias que foi capaz de usar para enfrentá-la. Equivale dizer que muitos dos professores talvez precisem de tanto acolhimento quanto alguns dos alunos que lá estão”, reforça a professora.
Sobre o Cepavi
O projeto Clínica de estudos, prevenção, intervenção e acompanhamento à violência (Cepavi) existe desde 2002, atuando na prevenção e no acompanhamento nas situações de violência, como são as que envolvem morte, suicídio, abuso e vulnerabilidade.
Atuam, especialmente, junto aos agentes multiplicadores, como professores e profissionais da saúde, embora também desenvolvam um trabalho sistemático com crianças em situação de vulnerabilidade nos centros de convivência e com mulheres vítimas de violência encaminhadas pela Delegacia da Mulher. “Nesse sentido, atendemos tanto a finalidade da prevenção quanto do acompanhamento da violência junto ao nosso público que abrange a cidade e a região. Frequentemente, somos chamados por secretarias de saúde ou educação em municípios da região para realizar workshops, oficinas e palestras envolvendo as mais diversas temáticas, a saber, bullying, violência virtual, automutilação, suicídio, entre outras”, comentou a coordenadora do Cepavi.