Os médicos se espantavam, pois uma família que poderia estar destruída pela decepção e amargura, o que observavam eram pessoas ligadas e condicionadas ao seu tempo diário, pouco se importando com as consequências trágicas de se considerar somente o agora; como a maioria vive.
Para o Federico era exatamente assim: um dia! A sua vida por um dia, por somente um; o dia de hoje. Mas ele nem se dava conta. Apenas vivia!
_Não olhe para trás minha Mãe, não importa! Brincava ele, repetindo o que sua Mãe gostava de falar em segredo; esquecendo suas paredes.
Nascera com uma doença raríssima, em que sua mãe imaginava ser ‘A Síndrome de um dia somente.’ Com risos e sorrisos, todos viviam alegres como a condição única de seu filho: a de esquecer tudo o que viviam.
Uma família despedaçada, imaginavam, mas que se fez a mais feliz da cidade! Isso porque quando se compreende e se aceita disfunções e malfeitos, o que está errado se transforma em grande acerto, e, o que se trinca, o tempo cola.
A rotina da família teve de ser alterada: manhãs, tardes e noites em função do Federico: uma criança maravilhosa, atenciosa e cheia de descobertas. Mas somente pelo dia! Quando se jogava na cama, dormia com sofreguidão, pois pensava o tempo todo nas maravilhas e novidades que havia conhecido hoje. Sem se importar em numerá-las e não querendo esquecê-las.
Mas na manhã seguinte, antes do amanhecer, tudo seria esquecido.
Em sua vida não havia passado, nenhuma lembrança e em todas as noites, seu cérebro ‘zerava’ quaisquer memórias que pudesse ter. Do que vivera no dia anterior, nada seria lembrado, guardado, armazenado… Nada. Nenhuma lembrança; a não ser o seu nome e o dos seus pais.
Sua mãe, carregava uma culpa escondida. Parecida com todas as culpas em que as mães carregam, quando seus filhos chegam ao mundo e não são recebidos. Mesmo que nesse caso, seu filho tenha chegado para viver no seu tempo certo. Diferente da noção de tempo, na maneira como o concebemos e vivemos; o ‘Chronos,’ escravizado em nossos relógios. Porque na verdade, o que nos faz pensar como eterno, sempre foi somente o agora.
Para o menino poder se adaptar, seus país mudaram suas vidas. Todas as manhãs, acordavam pelas 3 horas da madrugada, para lhe ensinar o alfabeto e alguns números; na esperança de que um dia as conexões em seu cérebro se completassem. Como isso nunca acontecia, todos os dias, o seu aprendizado começava pela mesma letra, pelo mesmo nome…
_Meu nome é Maria e sou a sua Mãe, ok? _falava sua mãe.
_Meu nome e José e sou o seu Pai. Ouvia de seu Pai.
_Sim, isso eu sei. Passei a noite pensando em vocês, mas as demais coisas vão se tornando brancas, límpidas, até desaparecerem; respondia.
Ao final, vejo somente um véu transparente…que me cobre por inteiro e faz o tempo voltar. Parece que o relógio enlouquece e os seus ponteiros ficam girando sem parar…
_ Ahh, você fala do relógio na parede?
_Isso mesmo? Vocês falaram que ele é o dono do tempo, não? E eu sonho com relógios. Sinto que estou dentro deles.
_Mas quem sou eu? Emendava.
_Você é nosso lindo filho, que amamos profundamente. Vamos começar agora um novo dia. Pronto?
_Mas quem eu sou diante de um novo dia?
_Você é um presente divino, que veio para lembrar a todos nós, que um dia, pode ser longo demais para que nos preocupemos com os outros; os que passaram e os que estão na fila para passar.
Vamos iniciar os seus estudos agora, pois o que importa é o que estamos vivendo em mais um deles. Na verdade, ninguém sabe das razões de estarmos aqui. Com você, estamos aprendendo a esquecer para respirar um dia por vez.
Como Federico era muito inteligente, soltou um grito de espanto e alegria!
_Para tudo! Como você falou a pouco, mãe?
O que é esquecer tudo para respirar?
_É que existe um ontem meu filho e como se não bastasse, existe ainda um amanhã. E nós vivemos a maior parte dos dias pensando em um deles.
Sendo que a maioria das pessoas vive em seu interior, mas extraviadas.
Mas você está livre de tudo, filho, porque você nada lembra do que viveu ontem, e, ainda nada espera pelo próximo dia; porque não há memórias que o forcem a esperar pelo que virá.
_O que virá minha Mãe?
_Virá sobre nós… Mais do ontem.
_ Agora é que eu não sei de nada…E todos riram.
Começavam com o alfabeto, com matemática, com o nome de sua escola, dos seus irmãos, da sua rua, dos seus professores…
Pelas 8 da manhã, ele sabia letras e alguns números e os encaixava perfeitamente.
Seu café demorava uma hora. Provava com a máxima paciência os pedaços de pães, todas as frutas que estavam sobre a mesa, e, logo após, deliciava-se com um café, demorado, sorvido aos poucos e muito feliz. Encantava-se com o vapor sinuoso que subia de sua xícara. Ficava maravilhado com o seu calor, que aquecia suas mãos e a todos.
Sua Mãe sabia que poderia ser o seu último café, daí que não o apressava nunca. Para cada coisa na mesa, uma pergunta. E quando se vestia, então! Gastavam mais tempo rindo do que se arrumando.
_Olhe, como chama isso?
_É a camisa da escola, Federico, já falei para você ontem.
_Ontem?
Hahaha. Daí lembravam que não adiantava falar, pois à noite, no seu sono mais ralo, como que uma régua, passava sobre sua consciência e apagava o seu dia.
Da mesma forma que não lembrava de ontem, sua admiração pela vida só crescia. Tudo era lindo, apreciável; tudo era surpresa e alegria. Todos em sua casa aprendiam a rir sobre não lembrar, esquecer, e, sobretudo, não esperar.
Logo que abriam a porta de casa era preciso contê-lo: saia correndo atrás de borboletas, gatos e cachorros; o que via. Uma bola pela rua era um motivo simples para o seu encantamento. Sorrir e só rir: seu recomeço, seus passos, seu tudo. O êxtase magistral pela vida… Para os que têm somente um dia!
_Corra atrás da bola com vontade Federico! Gritava seu pai.
Como lhe cabia somente hoje, também não conhecia rancor, raiva, decepção ou quaisquer mágoas. Um apelido estúpido? Nada o atingia. Pois a noite apagava toda sua história. Ao nascer do dia, a vida se renovava, literalmente, sobre sua casa. Apenas o dia valeria a sua vida; nada mais.
A sua inteligência nascia do fato de ter de aprender em todos eles, repetidamente, a ponto de escrever nas paredes do seu quarto o que mais amava. Mas assim que amanhecia, pendia sobre os seus quadros, uma história que já não importava mais. Então, recomeçar e reescrever tudo era a sua diversão. De novo, e, de novo.
Sem raiva e sem medos, sem mágoas ou lembranças, a família foi se moldando a um mundo de extrema presença, abandonando de vez os dias que passavam, não esperando nada, nem circunstância alguma que os movesse… Sem o rancor de ontem, sem a ansiedade de amanhã, a energia fluia em sua família com um rio que se esquece de onde partiu.
_Ao dia, o seu próprio mal. _ repetia sua mãe em voz baixa, dizendo o que escutara de alguém. E continuava: _ esperar é inútil. Lembrar, desperdício!
Os médicos se espantavam, pois uma família que poderia estar destruída pela decepção e amargura, o que observavam eram pessoas ligadas e condicionadas ao seu tempo diário, pouco se importando com as consequências trágicas de se considerar somente o agora; como a maioria vive.
Porque do ponto de vista de quem vive hoje, e somente hoje, o amanhã é uma ilusão desnecessária e um perigo para quem passa a vida planejando. É o fim da aflição! Sem um amanhã por temer, os tesouros perdem seu valor.
_ Hora de dormir Federico! Gritava sua Mãe.
Porque amanhã tem mais.
_Amanhã? ele questionava. _ você viu o que falou, minha mãe? E todos caíram na gargalhada. Ria, ria muito para o amanhã minha mãe! _ porque eu não sei onde ele estará.
Federico os mudou e os trouxe para uma dimensão mais profunda e complexa do que seus pais poderiam experimentar; o tempo que escorre pelas mãos das famílias e os consome a todos.
Ninguém fala no dia a dia de uma libélula esplendorosa, linda, liberta… Será que todos sabem que ela tem apenas um dia para voar.
Na medida em que seu filho crescia, todos em sua casa, amavam cada vez mais a sua vida e o seu modo intenso de viver e sentir… Somente pelo dia.
Sua mãe, aos poucos, foi quebrando e jogando fora as pequenas estátuas de sal e que passara muitos anos, escondendo e colecionando.
(Resenha do novo livro de NA Zanatta, nome que batizará seus trabalhos a partir de agora, e que trata de reflexões para o público infantojuvenil. O livro que se chamará “Federico por um dia”)
Autor: Nelceu A. Zanatta. Também escreveu e publicou no site “O menino sem rosto da Rua 59”: www.neipies.com/o-menino-sem-rosto-da-rua-59/
Edição: A. R.