Francisco Machado é uma pessoa amigável, transparente e uma ótima companhia, seja em momentos formais (de reunião ou formação) ou em momentos mais descontraídos.
Machado dedicou sua vida à educação, como professor concursado da rede estadual de ensino e à religião anglicana, na qual exerce a função de pastor. Tem 64 anos, sacerdote há 35 anos. Formado em Teologia, Filosofia, Ciências e Letras pela Universidade da Região da Campanha, Bagé. Especialista em Orientação Educacional.
Boa parte de sua vida e de sua história viveu em Tapejara, uma pequena e próspera cidade do interior do RS. Lá estabeleceu raízes, criou filhos e manteve relações amistosas e fraternas com os cristãos da Igreja Católica e da Igreja Evangélica, como nos relatará a seguir.
Revelar um pouco da história de Francisco Machado é importante para reconhecermos a importância de líderes religiosos que, por sua atuação, promovem a convivência ética e respeitosa entre as religiões. É, igualmente importante, para conhecermos um pouco mais dos fundamentos e das práticas religiosas da Religião Anglicana no Brasil e no mundo.
NEI ALBERTO PIES: Irmão Francisco, descreva-nos, de forma breve, como iniciaste a sua caminhada na religião Anglicana? Como surgiu o seu desejo de servir a Igreja Anglicana.
FRANCISCO MACHADO: Fui convidado para participar da reunião da juventude em uma Paróquia anglicana em minha terra natal, São Gabriel. Nunca havia tido em minha vida uma acolhida tão afetiva. A partir daquele encontro com os jovens, nunca mais deixei de participar da vida da Paróquia. Fui presidente do grupo jovem, fiz parte da diretoria paroquial, participei ativamente das celebrações.
Descobri minha vocação para o sacerdócio nesta relação contínua na vida comunitária. Entretanto, devo dizer que minha mãe, católica de nascimento, foi a primeira pessoa que mexeu com minha vocação. Ela costumava escutar um programa religioso que a Matriz do Arcanjo São Gabriel, em São Gabriel, transmitia pela rádio local depois do jornal. Todo santo dia ela ouvia a “Voz da Paróquia”. Por influência desse programa, eu me imaginava padre caminhando com todos aqueles paramentos pelas ruas da cidade, visitando as pessoas.
Neste período, ainda vivíamos na lavoura. Eu não compreendi os primeiros chamados de Deus, mas ele não desistiu de mim até que eu entendesse que Ele havia me escolhido. Hoje sou um padre Católico Anglicano. Sou batizado na Igreja Católica Romana, Crismado e Ordenado Sacerdote na Igreja Anglicana. A primeira me recebeu no batismo e a segunda me acolheu para o sacerdócio. Deus é surpreendente no cuidado com nossa vocação.
NEI ALBERTO PIES: Quais são as suas maiores realizações no serviço e na missão como pastor da Igreja Anglicana no Brasil?
FRANCISCO MACHADO: São tantas. Entretanto, eu colocaria o ecumenismo, a educação o trabalho social. O Centro Social de Capo-Erê, no distrito de Erechim, foi sem dúvida, minha melhor experiência como sacerdote. Resgatamos a dignidade de muitas crianças e famílias que viviam permanentemente em situação de risco em área ocupada. Instalamos luz e água nos casebres, cercamos os lotes e os ensinamos a fazer horta com o apoio de uma técnica aposentada da EMATER. Montamos um centro de distribuição de alimentos e roupas. Aplicamos a Pastoral da Saúde, com o apoio de nossos irmãos católicos romanos. Nesta comunidade nunca mais morreram crianças – tragédia comum naquele lugar.
O ecumenismo e a inter-religiosidade fazem parte da minha vocação para a unidade e comunhão entre as religiões.
Outro trabalho que me fez muito feliz fui ter ajudado, do mesmo modo, as comunidades indígenas Guarani e Caingangue.
NEI ALBERTO PIES: Conte-nos como também escolhestes a profissão de professor e qual é, na sua visão, a importância da educação neste momento histórico?
FRANCISCO MACHADO: Sabe, meu amigo Nei, estas coisas a gente não escolhe, nascem conosco. Ser professor, para mim, é como ser sacerdote. Deus, para o exercício dessa função, coloca em nossas mãos a obra prima da sua criação que é o ser humano. Neste caso, ele nos chama para acrisolar essa pedra e fazer dela um diamante onde se vê refletido: os animais, a natureza e o cosmo, em todo seu esplendor.
Ensinar as linguagens, as ciências, à matemática é muito pouco para o que se espera do professor. Isso até os ladrões aprendem e usam em suas safadezas. Ser professor é entregar-se ao compromisso social, é dar-se ao amor pelo outro, é respeitá-lo como sujeito, é reconhecê-lo impregnado de cultura e inteligência, é dar-se ao diálogo com os diferentes, é chegar ao nível da outra pessoa sem preconceito, discriminação, intolerância. Neste momento histórico, a educação precisa construir o sentido ético, estético, humano e religioso. Não se faz um Município, um Estado e um País sem estes valores.
NEI ALBERTO PIES: Participas há muitos anos do CONER Seccional Passo Fundo, o Conselho do Ensino Religioso. O que aprendeste, nestes anos, no convívio das diferentes crenças e denominações religiosas?
FRANCISCO MACHADO: Realmente, tenho expressado que o CONER foi a melhor universidade que cursei. Conviver com outras religiões é como penetrar no cosmo.
A diversidade religiosa e suas curvas são aspectos que nos ressuscitam. Ela faz-nos romper com nosso pequeno mundo, nossas pequenas e diminutas repúblicas, nossa arrogância religiosa, nossa ilusão de Deus como propriedade divina.
Não foi a Igreja Anglicana que me ensinou ser cristão, não foi o seminário que me ensinou ser sacerdote. Entretanto, o CONER me ensinou ser anglicano e ser sacerdote. Foi neste espaço que ressuscitei da minha morte religiosa e dei sentido para meu sacerdócio. Eu pude ver além dos meus próprios muros, pessoas e religiões de profundo sentido e riqueza cultural.
NEI ALBERTO PIES: Quando, como e porque surgiu a Igreja Anglicana no mundo? Como e quando a Igreja Anglicana chegou ao Brasil?
FRANCISCO MACHADO: A Igreja Anglicana não foi fundada. A Igreja Católica Romana sofreu um corte horizontal no século XVI, por razões políticas e de interesse pessoal do Rei Henrique VIII, o qual não aceitando a negativa do Papa Clemente de casá-lo novamente, retalhou, tornando a Igreja Católica Romana da Inglaterra independente de Roma. Daquele momento em diante, a Igreja da Inglaterra teria vida própria sem qualquer obediência ao Papa.
A partir de então, ela se esparrama pelo mundo e vem para o Brasil via Estados Unidos, onde é muito forte. No Brasil, chegou há mais de um século. Por influência do protestantismo, veio para o Brasil com muitas características evangélicas. Mas, preservou sua catolicidade por meio do uso das liturgias, eclesiologia, ordens paramentos, sacramentos, hinologia. Sua sede fica em Cantuária, na Inglaterra, residência do Arcebispo chefe do Anglicanismo no mundo.
NEI ALBERTO PIES: Que diferenças e que semelhanças a Igreja Anglicana tem com relação à Igreja Católica?
FRANCISCO MACHADO: A Igreja Anglicana fez algumas mudanças em sua eclesiologia. Os sacerdotes podem casar-se e as mulheres podem ser ordenadas sacerdotisas. Estas questões, mesmo contraditórias para com a eclesiologia Católica Romana, não impedem que Inglaterra e Roma mantenham o diálogo permanente por meio de uma Comissão Anglicano-Católica Romana. Há pontos comuns da prática Católica Romana na Igreja Anglicana. As teologias, liturgias, eclesiologias, convergem positivamente para histórica unidade destas duas grandes igrejas. Elas continuam parte uma da outra.
NEI ALBERTO PIES: Como é a estrutura organizacional da Igreja Anglicana?
FRANCISCO MACHADO: O Arcebispo de Cantuária é o líder simbólico da comunhão anglicana no mundo. Em cada país ela é autônoma e independente em suas decisões. Estrutura-se em dioceses. Cada uma delas tem um bispo. Para representa-la. É eleito, entre seus pares, um Bispo Primaz que participa da mais importante conferência da igreja – Conferência de Lambeth. Participa também da reunião dos primazes do mundo do Conselho Consultivo Anglicano.
NEI ALBERTO PIES: Quais são os fundamentos da fé professados pelos seguidores do Anglicanismo?
FRANCISCO MACHADO: Fé, Bíblia, Tradição e Razão. Os Credos Nisceno e dos Apóstolos, são sua expressão comunitária de fé. A Bíblia, como Livro Sagrado que tem todas as coisas necessárias para a salvação. A tradição como suporte, coluna e fundamento de sua prática eclesiológica. A razão como elemento que distingue o ser humano das demais formas de vida do mundo e o respeito que ele deve ter com o todo. A razão como equilíbrio da emoção.
NEI ALBERTO PIES: Quais são as práticas religiosas mais importantes de um seguidor da Igreja Anglicana?
FRANCISCO MACHADO: É considerado membro aquele que é batizado, contribuinte e comungante. Deve também comportar-se com ética e respeitar a dignidade de todo ser humano e o meio ambiente onde está inserido. Deve orar e ler a Bíblia, participar ativamente da vida da Igreja.
NEI ALBERTO PIES: Como foi a convivência da sua Igreja/paróquia na próspera cidade de Tapejara, RS, na convivência com os outros irmãos cristãos?
FRANCISCO MACHADO: O ecumenismo está implícito na prática anglicana. A convivência sempre foi muito próxima com os irmãos católicos romanos, irmãos da Igreja Evangélica de Confissão Luterana do Brasil. Fiz, inclusive, o curso de pós-graduação oferecido pelo ITEPA (Instituto de Teologia e Pastoral, da Arquidiocese de Passo Fundo) em Tapejara. A convivência foi ótima, como sempre.
NEI ALBERTO PIES: A Igreja Anglicana ordena mulheres? Qual é o papel das mulheres na religião?
FRANCISCO MACHADO: Sim, ordena mulheres. Foi uma luta de dez anos para que isso fosse aprovado no Brasil. A aprovação foi antes que a Inglaterra, berço do anglicanismo, aprovasse a ordenação feminina. Hoje boa parte do clero brasileiro é composta de mulheres. Já temos duas bispas eleitas no Brasil. O papel da mulher sempre foi exercido nas ordens paroquiais. Por exemplo: Ordem da Santa Cruz, Ordem das Filhas do Rei, Sociedade Auxiliadora de Mulheres, União das Mulheres Episcopais Anglicanas do Brasil. Há vários espaços para as mulheres na Igreja Anglicana.
NEI ALBERTO PIES: Como a sua Igreja trabalha o envolvimento da juventude na fé?
FRANCISCO MACHADO: Cada diocese tem sua Pastoral da Juventude. Existe o encontro nacional da juventude que acontece anualmente. Este encontro reúne lideranças do Brasil para refletir sobre a problemática do jovem.
NEI ALBERTO PIES: Como vês hoje o esforço do Papa Francisco em promover o diálogo e a paz entre as diferentes religiões do mundo?
FRANCISCO MACHADO: Tenho profunda reverência e admiração pelo Papa Francisco. Um homem santo, humano e coerente. Um grande líder, que pela sua simplicidade, tem se tornado referência no trato do diálogo e da paz para o mundo. A América-Latina nos legou um dos melhores e mais venturosos papas da atualidade. Os anglicanos guardam profunda reverência pelo Papa Francisco.
NEI ALBERTO PIES: Que outras questões da sua Igreja desejarias compartilhar com professores e com estudantes?
FRANCISCO MACHADO: Queridos professores: a dimensão religiosa deve ser a melhor referência da prática pedagógica do professor. O professor deve primar por uma prática pedagógica que respeite a diversidade religiosa. Aos estudantes: vocês devem reconhecer que o amor, a solidariedade, fraternidade e justiça, são práticas que nos unem. Nunca deverão ser intolerantes e preconceituosos em relação a opção religiosa de seus irmãos. Toda a religião é boa. Entretanto, tem muita “igreja” que não é religião, mas é um centro de exploração da boa fé das pessoas.
Os jovens devem ler estudar e refletir sobre a Bíblia para não se deixar levar por falsos profetas e charlatões que falam em nome de Deus para roubar dinheiro dos pobres com a ilusão da prosperidade e da cura.
NEI ALBERTO PIES: Uma frase que defina os seus sonhos.
FRANCISCO MACHADO: Quem conduz o trem à seu destino são os trilhos finos.
NEI ALBERTO PIES: Uma ideia que defina o mundo na atualidade.
FRANCISCO MACHADO: Os ricos farão tudo pelos pobres, menos descer de suas costas. Tolstoi estava certo. Hoje, o mundo acentua as diferenças entre ricos e pobres. De um lado, o egoísmo, e de outro lado o aprisionamento na condição da pobreza e miséria.
NEI ALBERTO PIES: Uma mensagem final.
FRANCISCO MACHADO: Puxa! Vamos lá. Leia, leia muito. A leitura tem o dom de ressuscitar. Leia bons romances, leia poesias, contos, narrativas, histórias. A leitura é um belo caminho para nos livrar da ignorância. A leitura nos permite construir autonomia.
Um livro que se leia é uma viagem que afasta o infinito de nossa presença, dois livras, três livros, quatro livros, cinco livros, muitos livros, milhares de livros nos fazem cada vez mais obsessivos em querer alcançar o horizonte. Não chegaremos lá por nós mesmos ou levados por alguém ou alguma coisa, mas ficaremos reconhecidamente sábios. A sabedoria é fruto da simplicidade e nos vem para tornar o mundo mais humano, fraterno e justo.
Sugestões de uma prática pedagógica
Questões para aprofundar conhecimentos da cultura e da história dos anglicanos no Brasil.
Esta atividade pode ser aplicada a estudantes do sétimo ano, segundo trimestre, Unidade temática “Manifestações religiosas/crenças religiosas e filosofias de vida”, Objeto de Conhecimento: “Lideranças religiosas” e “Habilidades”: reconhecer papéis atribuídos às lideranças de diferentes tradições religiosas/identificar lideranças religiosas presentes no espaço municipal e suas contribuições à formação espiritual/exemplificar líderes religiosos que se destacam por contribuições à sociedade.
No nono ano, Unidade temática “Crenças religiosas e filosofias de vida”, Objeto de Conhecimento “Vida e morte”, habilidades “identificar sentidos de viver e morrer em diferentes tradições” e “caracterizar ritos fúnebres de diferentes tradições”.
Esta prática pedagógica também pode ser aplicada a estudantes do Ensino Médio. Após ler a entrevista de Francisco Machado, da Igreja Anglicana, responder às questões:
- O que chama atenção na entrevista (conteúdo, conhecimentos do entrevistado, forma de expressão do entrevistado, outros). Por quê?
- Acesse este link da matéria do site Brasil Escola Após a leitura, faça resumo da história do Anglicanismo.
- Francisco Machado revela suas experiências com Ecumenismo. O que é Ecumenismo? (Se não consegue responder pela entrevista, faça pesquisa internet)
- Francisco Machado fala que aprendeu muito com o diálogo inter-religioso na sua participação no CONER. Que aprendizagens foram estas?
- Como se dá a relação da Igreja Católica e a Igreja Anglicana no Brasil e no mundo? Que diferenças e que semelhanças guardam entre si?
- Por que Francisco Machado, ao final de sua entrevista, alerta para a importância da leitura na vida da gente?
- Quais são as características do testemunho de Francisco Machado como religioso, professor a favor da convivência pacífica e respeito entre as religiões?
- Conheça a Igreja Anglicana através deste vídeo. Depois, faça um resumo do vídeo ( 10 a 15 linhas).