Crescimento econômico e o problema do esgoto a céu aberto

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A economia produtiva, historicamente, tem sido constantemente colocada para o serviço de atenuar os baixos padrões de renda, e pouco ou nenhum esforço é então direcionado para erradicar as condições inóspitas de vida, cuja expressão maior, sem espaço a dúvida, é a falta de saneamento básico.

O pensamento econômico convencional insiste em medir níveis de pobreza tão somente a partir da insuficiência de renda. Por esse critério, o Banco Mundial constatou em 2012 que 12,7% da população mundial (903 milhões de pessoas), que recebia menos de US$ 1,90 ao dia (considerando a paridade do poder aquisitivo) eram considerados pobres, vivendo, portanto, abaixo dessa “linha”. 

A questão central é que o correto conceito de pobreza não pode se limitar a insuficiência de renda, mas necessariamente tem que abarcar outras tantas privações que mancham as abjetas condições de vida dos mais necessitados, dentre essas a falta de saneamento básico, vale dizer, a convivência direta e diária com esgoto a céu aberto.

Pior é que não há, aos olhos da economia tradicional, pelo menos a contento, uma correlação entre as privações de renda e de higiene. Diante disso, o convencionalismo econômico “prioriza” medidas de combate à insuficiência de renda, usando para tanto políticas de estímulo ao crescimento físico da economia, enquanto fecha os olhos para o gravíssimo problema da falta de saneamento básico.

Não por acaso, no mundo, mais de 38% das pessoas sofrem com a falta de higiene básica. Tomando apenas os 48 países considerados “menos desenvolvidos” descobre-se que 65,5% das pessoas ali residentes desconhecem as noções centrais de um ambiente favorável em termos de saneamento básico.

No ranking mundial do saneamento, o Brasil ocupa a vexatória 112° posição, com mais da metade de sua população (estima-se em 118 milhões de pessoas) sem acesso a tratamento de esgoto. Somente a região Norte tem 90% dos brasileiros vivendo sem serviços de saneamento básico.

Daí decorre outro inquietante problema: ao expor especialmente as crianças em contato direto com esgoto a céu aberto, consequentemente com vírus e bactérias, aumenta-se sobremaneira a incidência de doenças como febre tifoide, cólera, leptospirose e parasitose.

Não é de hoje que estudos médicos mostram claras evidências que, recorrente infecção parasitária na primeira infância (de 0 a 7 anos), por exemplo, reduz sensivelmente a capacidade de raciocínio, comprometendo para sempre a inteligência e o desenvolvimento corporal dos futuros adultos.

De igual modo, um recém-nascido, cuja mãe, durante toda a gestação, esteve exposta a um ambiente sem coleta e tratamento de esgoto, vai sentir muito mais a exposição a essas substâncias e, certamente, poderá ter má formação cardíaca, sofrer de deficiência hepática, além de apresentar problemas de ordem imunológica.

Ademais, a comum diarreia que acomete crianças expostas ao contato direto com esgoto a céu aberto “suga” do cérebro as calorias necessárias a seu desenvolvimento. Relacionado a isso, não se pode perder de vista que o cérebro é o órgão do corpo humano que mais consome energia. Num recém-nascido esse “consumo” é de 87%; com cinco anos cai para 44%, aos dez chega em 34%, e, num adulto, consome 20%.

Desnecessário afirmar que essa energia é vital para manter as células cerebrais saudáveis e alimentar impulsos nervosos. Ora, é evidente que isso afeta todo o sistema neurológico, ou seja, o sistema nervoso central e periférico de uma criança, comprometendo-a em suas funções futuras.

Nesses casos, o cérebro pode até desenvolver o tamanho correto, mas a capacidade de fazer sinapses, ou seja, de conectar ligações nervosas estará pois completamente prejudicada.

A ciência mostra que 90% das sinapses se formam até os 7 anos de vida, atingindo a maturação e a complexidade de uma rede neuronal aos 18 anos. Logo, essas faixas de idade –  0 a 7, e de 8 a 18 – determinam a capacidade e a personalidade do indivíduo.

Uma criança que nasce e vive, especialmente em seus primeiros anos vida em ambientes expostos a péssimas condições de saneamento, convivendo com todo tipo de contaminação ali decorrente, sofrerá considerável déficit de aprendizado intelectual pelo resto de sua vida.

Pois bem. Aonde se relaciona a questão do crescimento econômico com esses fatos?  Simples: enquanto o tradicional pensamento econômico não se desgarrar da noção fartamente difundida de que a pobreza não deve ser vista apenas pela insuficiência de renda, e, por isso, enveredar esforços no crescimento da economia para tão somente “tentar” aumentar a renda geral, perpetuaremos o gravíssimo problema da falta de saneamento básico, condição essa posta em plano secundário diante da “necessidade” de promover o famigerado aumento da renda.

Num tempo em que o desenvolvimento tecnológico avança celeremente no intuito de facilitar a construção de mundo mais pacífico e menos desigual, parece não haver paradoxo mais tosco e aberrante que presenciar incomensurável contingente populacional vivendo em desumanas condições de vida, expostas ao convívio diário com esgotos a céu aberto.

No entanto, a economia produtiva, historicamente, tem sido constantemente colocada para o serviço de atenuar os baixos padrões de renda, e pouco ou nenhum esforço é então direcionado para erradicar as condições inóspitas de vida, cuja expressão maior, sem espaço a dúvida, é a falta de saneamento básico.

Posto isto, cabe indagar: até quando tal desproporção será aceitável?

Economista, ativista ambiental e Mestre em Integração da América Latina pelo Programa de Pós-Graduação Integração da América Latina (PROLAM), da Universidade de São Paulo (USP). Autor de Economia destrutiva (CRV, 2017) e Civilização em desajuste com os limites planetários (CRV, 2018). prof.marcuseduardo@bol.com.br

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