Tenho saudades da minha infância,
mas nenhuma da escola repressora,
nem da igreja de missas intermináveis,
sequer dos sermões moralistas e violentos.
Sinto saudades das pessoas.
Quando criança minha mãe levou a mim e a minhas irmãs ao barbeiro da cidade. O que ela pretendia só podia ser feito por um barbeiro, jamais por uma cabeleireira. Explicou direitinho como queria que cortasse nossos cabelos revelando um conhecimento bem cosmopolita. Já adulta identifiquei o corte chanel tão do gosto das européias desde os anos vinte e que minha mãe deve ter visto na revista O Cruzeiro.
Tratava-se de um corte curtinho com franja reta e nuca batida de forma radical. Feliz com o resultado minha mãe arrumou-nos com vestidos brancos enfeitados na frente e nas barras. O dia era muito quente por isso aqueles vestidos foram os escolhidos. Eles não tinham mangas, o que era uma temeridade à época e lá fomos as três de corte de cabelo novo, vestidinhos vaporosos, rumo ao clube onde faziam sorvete com aquele cheiro inacreditável de antigamente.
E fomos vistas! E pagamos o preço logo, logo. Ao chegarmos à escola no dia seguinte esperavam por nós.
Na década de cinquenta as salas de aula eram divididas. De um lado os meninos e do outro as meninas, a exemplo da distribuição do povo católico. Na igreja as mulheres ficavam do lado esquerdo e os homens no direito. Normal para a época. Pois fomos obrigadas a sentar com os meninos, cada uma em sua sala. O motivo era o corte de cabelo igual ao dos meninos.
As freiras aproveitaram para comentar sobre nossos vestidos, completamente inapropriados para meninas católicas. Com o tempo compreendi o comportamento das freiras, assim como o do padre, que desceu do púlpito em uma manhã de domingo, para colocar mangas de papel nos braços de uma paroquiana envergonhada. Minhas irmãs e eu fomos humilhadas como aconteceu com aquela mulher. Sinais dos tempos!
Frente ao constrangimento que jamais esqueci, passei a observar atentamente o comportamento das pessoas. Meu pai alfaiate fazia roupas masculinas, mas nunca fez calças compridas para meninos, que só podiam usá-las curtas. As compridas eram conquistadas quase passando à adolescência. Usar calças compridas era sinal de ser quase um homem.
Minha mãe e meu pai demoraram a engolir o acontecido. As palavras deles soavam estranhas para a época e para a cidadezinha pequena e submissa aos preceitos ainda medievais que pautavam a filosofia do colégio e da igreja. Não demorou e nos mudamos para cá a fim de continuarmos os estudos. Minha mãe continuou assim, com seu jeito inquieto e curioso. Devo a ela e ao meu pai o senso de que há imposições ridículas, que diminuem as pessoas em nome de uma moral arcaica e discriminatória.
Dona Lina gostava de quebrar regras, principalmente aquelas que tolhiam o que ela considerava adequado para os filhos. Assumiu tarefas quase impossíveis contando com a cumplicidade do seu Elmo, um trabalhador alegre e generoso.
Acho que vem de lá, do cabelo chanel e do vestidinho cavado, a repulsa que sinto por “normalizações”, tão comuns até hoje, quando meninas e meninos são criados com moral dupla, uma para eles e outra para elas.
Vem do exemplo da minha mãe um senso de justiça do qual me orgulho e do meu pai a alegria por ter filhos e filhas, amigos e amigas e o gosto por bailes, chopp, risadas e um pouquinho de irreverência, o que dava a ele um charme especial.
Tenho saudades da minha infância, mas nenhuma da escola repressora, nem da igreja de missas intermináveis, sequer dos sermões moralistas e violentos. Sinto saudades das pessoas. Algumas indomáveis como minha mãe, outras conformadas com as limitações que julgavam certas. Mas tudo é um patrimônio que acalento como a um tesouro
Papel da família e da escola na educação dos filhos.