Democracia à brasileira (uma reflexão sobre as diferenças) – parte II

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Pergunto coisas ao buriti e o que ele responde é: a coragem minha. Buriti quer todo o azul e não se aparta de sua água – carece de espelho.  Mestre não é quem sempre ensina, mas quem, de repente, aprende. (J. G. Rosa, Grande Sertão: Veredas)

Essa, caríssimos, é, pois, a parte II da “Democracia”. Eu diria quase literalmente, já que a I se constitui numa espécie de reconhecimento de que ela (a Democracia!), apesar de tudo, teima em querer se insinuar nas vozes das e dos que remam na direção contrária ao proposto pela insídia de um poder que teima em separar para se beneficiar, caracterizando a “democracia à brasileira”…

Leia aqui: https://www.neipies.com/democracia-a-brasileira-uma-reflexao-sobre-as-diferencas-parte-i/

Eu já tinha me debruçado sobre mais adjuntos para essa “democracia à brasileira”, quando tropecei em algo que, súbito, emparedou-se à minha frente, impedindo que avançasse para fechar a composição. Um corpo estancou, muito próximo, e uma possível democracia “à brasileira” quase desanuviou-se; a memória se recompôs e se materializou uma lembrança vívida e, paradoxalmente, repleta de calor! Com esse acontecimento o texto teve de ser refeito!

Quem não se renderá a um paradoxo desses? Ora, quem, como eu, que quase não vive sem se sentir aquecido! Pois, num rasgo, pude me ver envolta num calor intenso, mesmo quando o acontecimento estava a sugerir um frio descomunal. Foi o que sucedeu, quando soube, no próprio dia do acontecimento (11/07/2023), do falecimento do Prof. Carlos Rodrigues Brandão!

Não vou discorrer aqui sobre a biografia dele. É fácil encontrar no mundo virtual. Mas quero, sim, sublinhar com muita ênfase, sua influência sobre pessoas que, como eu, se refugiaram não nas certezas, mas nas perguntas, nas curvas díspares da circunstância “aprende-ensina; ensina-aprende”.

O Carlos Brandão, no grande cenário da “democracia à brasileira”, se constituiu numa das não muitas vozes a gritar “a linha não é reta!”, quando se falava em Educação/Ensino… Esteve com Paulo Freire, eram amigos, escreveram juntos: “dize-me com quem andas”, e tal e tal…

Trago comigo, de meu tempo de aprendente, quando ministrava aulas de metodologia do ensino para estudantes de Letras numa universidade, uma lembrança especial das falas do Prof. Brandão. Essa lembrança se encontra numa de suas obras de nome “O que é Educação”.

Bem no comecinho, Brandão já dispara a epígrafe que coloquei neste texto. Daí, é possível intuir o que se sucederá. Quero, no entanto, me ater a um pequeno trecho, que está lá à guisa de introdução, em que é mencionado um acordo, feito nos Estados Unidos, em dois estados, entre seus governos e os povos originários que viviam nesses estados. A ideia era basicamente um oferecimento de vagas para que os jovens índios fossem estudar nas escolas deles.

Conta Brandão que os índios gentilmente agradeceram e declinaram do convite. Motivos? Eles argumentaram que os diferentes povos e nações tinham diferentes concepções de mundo e que eles (os governantes), certamente, não se ofenderiam por dizerem que a ideia de educação que eles (os representantes da oferta) tinham não era a mesma que eles (os índios) tinham. E completaram expondo os resultados de experiências neste sentido que outras nações indígenas tinham tido: quando os estudantes índios voltaram para seus espaços, já com diploma na mão, não sabiam mais correr, ignoravam a vida da floresta e se tornaram incapazes de suportar o frio e fome; não sabiam mais caçar ou construir uma cabana. Enfim, se tornaram inúteis na comunidade deles! 

A partir daí, Brandão prossegue dizendo que (…) a educação pode existir imposta por um sistema centralizado de poder, que usa o saber e o controle sobre o saber como armas que reforçam a desigualdade entre os homens, na divisão dos bens, do trabalho, dos direitos e dos símbolos. (p. 4).  E esse trecho reverbera um modelo de educação que transita ainda solto na “democracia à brasileira”! 

Assim, o Prof. Carlos Rodrigues Brandão nos lega seu imperativo como educador: a constatação de que nos recônditos de uma possível reflexão para a ação, no eixo educativo do existir humano, um vislumbre de esperança se materializa. É então que podemos desafiar tudo o que essa avalanche de despropósitos e injustiças sociais ajudou a construir, a partir do nosso reconhecimento de que (…) a educação pode existir livre e, entre todos, pode ser uma das maneiras que as pessoas criam para tornar comum, como saber, como ideia, como crença, aquilo que é comunitário como bem, como trabalho ou como vida (…) (p. 4).

Vai em paz, mestre!

Autor de mais de cem livros, boa parte sobre educação popular e método Paulo FreireBrandão deixa um legado inestimável para a construção de uma escola mais justa e igualitária. Leia mais: https://www.ihu.unisinos.br/categorias/630449-carlos-rodrigues-brandao-e-o-sonho-da-educacao-popular?

AutoraIr. Marta Maria Godoy

1 COMENTÁRIO

  1. Muito bom este texto im memorian. Uma bela reflexão. Quiçá nossa memória não esqueça do legado destes grandes mestres. Obrigado Ir.Marta.

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