Afinal, ainda não respondemos as perguntas: o que somos?
Por que somos? Nosso produto atual é o caos, a dúvida sacralizada
e a confusão derivada. O espírito democrático e as soluções
democráticas passam por uma elevada responsabilidade e
maturidade psicológica para atuar e equalizar a realidade da
existência humana, como hóspedes responsáveis
sobre este planeta.
Tenho me perguntado muitas vezes sobre o impacto do termo democracia na minha psicologia em contínua humanização.
A primeira abertura semântica emotiva que acontece em mim é ambigüidade, superficialidade. No raso dos primeiros pensamentos me vem a primeira associação, não vem como confirmação, mas como questionamento: Somos todos iguais?
A democracia como entendida pelo senso comum é verdadeira em significado e sentido? Ou, devido a nossa imaturidade psicológica e moral usamos o termo para substituir a responsabilidade de construir a diversidade única em cada um de nós com autonomia e desejamos democracia compensatória?
“Somos todos iguais”, sim! Somos humanos em primeira instância e isso nos iguala, somos vida desejada pela vida também em primeira instância. Mas, desse ponto em diante vem o comprometimento, a responsabilidade existencial, significa que cada um de nós, na medida que faz existência consciente, se diferencia. Quando fazemos a existência como história, nos diferenciamos. E isso é belo e bom!
Música Diversidade – Lenine.
Onde está o ponto de conflito filosófico psicológico desse aparente contraditório: ser igual como humanos e ser diversos responsáveis no auto-pôr-se existencial na construção da democracia real?
A natureza não conhece a democracia, como diz Antonio Meneghetti: “A vida não pensa, a vida faz”, e, nesse fazer dispõe projetos únicos, sementes de toda espécie, em coerência absoluta em si e por si. A vida quando faz não pergunta se é justo, é proporção pura a si mesma.
A vida não ama mais a um ou a outro, a vida faz o belo de cada ser pelo belo proporcional de si e em si, ali cada um de nós é o que é, perfeito. Ponto e basta, dispõe o potencial seminal de um real ou do real para que floresça, aconteça e faça história em conformidade com a própria semente que é.
Do primeiro respiro em diante, nasce a grande responsabilidade humana de autoprodução de si próprio. Na medida em que avançamos na autoprodução de nós próprios, a vida acontece desse ou daquele modo, personaliza, nos tornamos pessoas. No erro a dor, na realização a glória.
Essa autoprodução que faz história responsável em cada pessoa parece tão difícil ao ser humano que a certo ponto beira a algo trágico.
No âmago desta autoprodução o humano deveria experimentar vitória, aquela que escorre reforçando a ação com prazer e inteligência e o coloca no seu mais ser com sentido de realização. Por ser existencial, o erro não é de natureza, é um erro técnico conduzido pelas ficções fantasiosas sobre a vida e sobre nós próprios.
Desta dificuldade, a certa medida trágica, o humano enquanto existente, impedido por qualquer circunstância de chegar a pleno, faz do erro o modelo de civilização, faz da dificuldade o modelo de autoprodução também no social, perdido no caos das oportunidades perdidas ou negadas, na preguiça moral de ser virtuoso, constrói o caos e se torna um desordenado da natureza, passa a destruí-la ou subvertê-la até que não se reconheça mais, desumaniza.
Cada um de nós conhece a psicologia desordenada que comporta a infelicidade, a injustiça, o medo, a inveja, a dor, a mágoa, o revide, o estresse, a dúvida neurótica, etc.
Desordenada porque sentimos que não deveria estar ali, sentimos como se fosse fora da ordem do ser realizado.
A sociedade, e não poderia ser diferente, é o espelho do indivíduo desordenado da ordem do ser, esquizofrênico existencial, quando remói suas culpas, num giro asfixiante da realidade maculada pela preguiça de autoproduzir a pleno a si próprio na técnica eficiente da própria função psicológica.
A todos nós foi dado a intencionalidade dos heróis, sim, nosso ser é heróico. Somos heróis rumo à vitória, mas nesse heroísmo atuado sempre experimentamos a saga de prometeu e o fogo dos deuses.
Se, persistimos e somos sérios, ao final vencemos e recolhemos o fogo como vitória humana e humanizada na inteligência da vida. Se, erramos e somos preguiçosos, todos os dias nosso fígado será destruído e precisará regenerar-se do princípio, de dor em dor, até humanizar-se no fogo dos deuses, a liberdade.
O que faz o humano com esta trágica saga tantas vezes mal conduzida da sua humanidade?
Projeta na construção social toda a sua tragédia pessoal como se modelo de natureza fosse. Na realidade projeta e reproduz o modelo distorcido da semente inicial que não soube levar a termo. A criatura contra o Criador, contra a sua natureza, sem ao menos ter a mínima noção de como ela seja verdadeiramente, projeta na sociedade e constrói mundos especulares de deflexão distorcida do real que verdadeiramente é.
O modelo da sua deformada psicologia pessoal se somatiza no social, comporta os mesmos erros psicotécnicos de percurso que o tornaram tão reativo e fora do bem que é. Comete erros psicotécnicos como resultado, também, quando constrói o social; receita perfeita adulterada, comida ruim.
Aquilo que o humano experimentou como impedimento e não se responsabilizou em solucionar em si, se transforma na distorção de sentido de tudo aquilo que é seu infinito possível, vira o impossível almejado, atua ficção no bem e no mal.
Com tudo adulterado e exacerbado no negativo semântico dos verbos ser e fazer, paralisa a civilização em resistência ao outro, na mesma proporção da resistência que tem ao bem de si próprio; se eu não posso, o outro também não pode.
Da contradição nasce o outro como “inimigo meu”, o sabotador. Insemina o mal em tudo que possa romper esse circuito vicioso. Trabalha contra a natureza em revide a uma injustiça que pensa ter sofrido, briga com Deus, antes de rever a si próprio. Nunca se responsabiliza por resolvê-la com honestidade intelectual. Aceita que é débil e promove a debilidade de modo exemplar no ambiente que habita. Nunca rompe a fronteira da preguiça e do medo para rever a si próprio desde o princípio para reestabelecer o critério de natureza que lhe permite conformidade e reciprocidade no todo, como humano cosmoteândrico.
Quando o termo democracia foi criado tinha um significado, uma forma e uma aplicação, mas na sua máxima visava o bem comum. De lá para cá, com a humanidade cada vez mais esvaziada do bem comum, na lógica do “O homem é o lobo do homem” e essa é a única natureza sobre a qual ele aceita discorrer e confirmar atualmente, a vida social entra na lógica da política do lobo, vem a democracia moderna.
Democracia como exigência política, econômica, sanitária, etc. como escopo aparente ao bem comum, que pretende abarcar todos os problemas que afligem a comunidade humana, perfeita em tese, imperfeita e corroída por uma psicologia muito distanciada da sanidade ao bem comum, mesclada de toda sorte de desonestidades e imaturidades de humanos não responsabilizados diante de si próprios e nem diante da própria cultura humanística que trazem como semente em sentido psicológico espiritual.
Não conseguimos ainda fazer passagem da democracia biológica para a democracia psíquica de elevada racionalidade ontológica sobre o bem que somos. Afinal ainda não respondemos as perguntas: o que somos? Por que somos? Nosso produto atual é o caos, a dúvida sacralizada e a confusão derivada.
A humanidade segue em busca da democracia material, da igualdade de oportunidades como modelo, da crítica sobre aqueles que honestamente enfrentam suas ambições e se dispõe como líderes no seu ser e fazer mais porque chegaram ao mais, da injustiça como bandeira deformada da incompetência frente às proporções e soluções que precisam ser tomadas.
A democracia virou cabo de guerra econômica, política, social no vazio de interesses comuns, virou uma distorção de princípio onde os mais espertos agem como piratas do bem público em ambições fora de propósito. Essa é uma democracia territorial de psicologia duvidosa, uma democracia conduzida e concebida por modelos psicológicos que não contemplam a maturidade e nem a sanidade das relações humanas.
Defenda a Democracia. Ela é civilizatória, ela é progressista, ela é pacificadora, ela é de todos e para todos!
A democracia verdadeira deve nascer no coração do ser humano que se responsabiliza por fazer a sua parte segundo a sua natureza e segundo a autoprodução virtuosa de si próprio.
A democracia não pode ser feita por pessoas que não levaram a sério a construção de si próprias e projetam suas deficiências e desonestidades na sociedade como forma de alienação e corrupção de si no bem comum. Aqui, estou falando de virtudes democráticas, e não de currículo acadêmico ou bancário para exercer o “poder democrático” nos tantos jogos e tantos tabuleiros pré impostados na ambição distorcida daqueles que esqueceram o que é bem comum e só democratizam a perda aos outros, na subversão do verdadeiro espírito democrático.
O espírito democrático e as soluções democráticas passam por uma elevada responsabilidade e maturidade psicológica para atuar e equalizar a realidade da existência humana, como hóspedes responsáveis sobre este planeta.
Sim, somos hóspedes desse planeta maravilhoso e devemos honrá-lo, honrando a nós próprios. Se a ideologia favorável passa pelo conceito e pela palavra democracia, ótimo. O fato é que não importa a palavra de ordem e de passagem, importa o espírito humano que ela encarna e atua.
Ética e Ecologia desafios do século XXI de Leonardo Boff. Um vídeo de Adriana Miranda.
Afinar o conceito de democracia para escolhê-lo como guia virtuoso é, para mim, uma questão emergente e ineliminável, porque se aprendermos o espírito que ela encarna para o bem comum, gradativamente nos tornaremos verdadeiramente democráticos. Não precisaremos mais do termo como bandeira, teremos o termo como coragem, como uma força que vem do coração que pulsa pela realização da humanidade no um que nos diferencia e nos iguala no bem comum.
Antes do sistema se tornar democrático, precisamos nós, sermos democráticos, no mais alto patamar da nossa responsabilidade humana, humanizando-nos ao bem comum!
A única rebeldia cabível na democracia é aquela de tornar ao belo, sim, porque somos capazes de autoprodução do belo e do bem de nós próprios, como projetos espirituais perfeitos da vida que não é democrática, mas, nos projetou como democracia possível no bem comum do espírito humano, humanizado e prometeico.