No Brasil atual, os demônios não estão nas favelas, mas nos palácios, nos condomínios de luxo e em suntuosas catedrais.
“Meu nome é legião”, respondeu o homem possesso à pergunta de Jesus. Conhecido como Gadareno, aquele homem vivia como um animal selvagem, perambulando pelas ruas e cemitérios de Decápolis, região dominada pelas legiões romanas. Aquela não era uma possessão comum. O Gadareno era habitado por um coletivo de demônios. Tratava-se dos demônios oriundos de outras terras, que vieram com as forças invasoras, com suas pretensões colonizadoras. Por isso, o demônio implora para não ser expulso daquela região.
Quando os europeus desembarcaram nas Américas, trouxeram na bagagem os seus próprios demônios e não apenas doenças para as quais os nativos não tinham imunidade.
Não são demônios os que vieram com os negros escravizados e seus cultos animistas, nem os que eram cultuados pelos povos originários. Os demônios vieram com os que devastaram as civilizações que aqui já estavam, pilhando impérios, aproveitando-se da ingenuidade dos que os consideravam deuses.
Os demônios que aportaram aqui tinham pele alva, sotaque ibérico e costumes estranhos. Outros demônios chegaram à Índia com os ingleses, na África do Sul com os holandeses, e em tantas outras terras com aqueles que pretendiam conquistá-las e reivindicá-las às coroas que representavam. Tais castas demoníacas se manifestam nos explorados, mas atuam através dos exploradores. Não habitam apenas corpos, mas estruturais sociais.
No Brasil atual, eles não estão nas favelas, mas nos palácios, nos condomínios de luxo e em suntuosas catedrais.
Não são como as legiões romanas, mas se organizam em quadrilhas que assaltam o erário público, que exploram os fiéis com promessas mentirosas, que promovem o ódio, o preconceito e a intolerância contra a população LGBTQIAPN+, as minorias étnicas e os fiéis de religiões de matriz africana, que desqualificam a luta feminista, que desdenham dos direitos da classe trabalhadora, que espalham fake news, que tratam seus rebanhos como currais eleitorais, que endossam políticas negacionistas e genocidas em nome da fé, etc.
Aqui seu nome não é legião, é religião.
Não me refiro à religião em seu sentido lato (do latim religare), que provê a religação entre os seres humanos, independentemente de distinções étnicas, sexistas, confessionais ou sociais, fazendo com que nos preocupemos em cuidar dos mais vulneráveis representados em Tiago pelos órfãos e viúvas. Refiro-me à religião como instrumento que visa legitimar o poder e os interesses de quem lucra com a exploração. Portanto, deveria ser chamada de reLEGIÃO.
Trata-se do que o livro de Apocalipse chama de “A Grande Babilônia” que tornou-se morada de todo tipo de demônios. São estes demônios que precisam ser exorcizados do cenário político brasileiro para que finalmente alcancemos a tão sonhada justiça social, tornando-nos, assim, um dos protagonistas na construção da civilização do amor.
Autor: Hermes C. Fernandes
Autor da crônica “Aos pais cujos filhos deixaram a igreja”: https://www.neipies.com/aos-pais-cujos-filhos-deixaram-a-igreja/
Edição: A.R.