Decretou-se a morte do gaúcho real e, de suas cinzas,
como uma fênix grega, renasceu o
gaúcho sul-rio-grandense idealizado – romanceado.
Um trabalhador sincero, franco, bondoso, honesto, servil,
ético, patriótico, etc. um exemplo de dedicação ao estancieiro.
Na região platina [Rio Grande do Sul, Argentina, Paraguai e Uruguai] um personagem polêmico ocupa lugar de destaque na historiografia sul-rio-grandense contemporânea: o gaúcho-gaucho. De consenso historiográfico, apenas a sua origem: o gaúcho teria se formado do nativo destribalizado, desgarrado, do contato do europeu com o indígena e vagueava pelos campos platinos.
Nos períodos setecentista-oitocentista os trabalhadores do campo eram identificados como peões, cavaleiros, gaúchos, camiluchos, gaudérios, gauchos e changadores e considerados a ralé do Rio da Prata e Brasil. Colonos contrabandistas que comercializavam, ilegalmente, couros de gado.
Os couros eram entregues aos traficantes europeus. Viviam as margens da lei. Homens de má índole. Aproveitavam-se das guerras territoriais fronteiriças entre Portugal e Espanha para pilhar gado nas estâncias portuguesas. A caça ao gado era a principal atividade do gaúcho e lhes rendia algum dinheiro e produtos como a aguardente, garantindo assim, sua sobrevivência e seu modo de vida. Donos de uma liberdade invejável com moral, gosto e costumes irrefreável pela ordem social vigente.
Eram excelentes cavaleiros e se identificavam com o cavalo. O cavalo era sua extensão. Sentia-se um homem superior no lombo de um cavalo. A pé, era “um homem ordinário”. A habilidade no cavalgar estava, em certa medida, definida antes mesmo que o gaúcho tivesse condições de determiná-la. Ainda crianças, essa atividade era o principal meio de sobrevivência dos gaúchos. Manuseavam com maestria a boleadeira, lança, facão e laço. Passavam as noites ao relento e se alimentavam basicamente de carne.
A maioria dos viajantes que estiveram pelo território sul-rio-grandense, no século 19, referem-se aos gaúchos como um ser irresponsável, que não se apegava à família, ao trabalho, era um ladrão de gado e passava a maior parte do tempo nos bolichos-pulperias, bebendo, cantarolando e jogando cartas.
Peão de estância
O gaúcho contemporâneo idealizado e materializado no Rio Grande do Sul resulta da unificação dos modos e costumes do peão de estância, trabalhador assalariado, que vendia a sua força de trabalho ao estancieiro, com o gaucho ladrão de gado, contrabandista, sem chefe, sem lei, sem polícia e sem governo.
Os peões de estância eram, na sua grande maioria, nativos guaranis. Devido as suas habilidades na montaria e domesticação do gado, sobretudo, cavalar-muar, eram muito requisitados para trabalho nas Estâncias do Rio Grande do Sul. Eram os trabalhadores das lides do campo, responsáveis pelo amansamento e vigilância dos rebanhos.
Deduz-se nos relatos dos viajantes que estiveram nos territórios do Rio Grande do Sul que os nativos, com a destruição dos sete povos em meados do século 18, acabaram se estabelecendo nas estâncias exercendo o trabalho de peão. Os gaúchos se empregavam esporadicamente como peões de estância, quando estavam sem dinheiro.
Setembrino Dal Bosco, em 2015, lançou livro Escravidão e pastoreio no Rio Grande do Sul 1780-1889. Conheça mais sobre a obra.
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O contato dos imigrantes interno e externo com os peões nativos, trabalhadores escravizados e com o gaúcho nas lides campeiras aproximou costumes e modos de vida diferenciados. Os primeiros já domesticados e estabelecidos nos limites da estância. O segundo levando uma vida sem chefes, sem leis e sem polícia, mas com uma habilidade enorme em laçar, caçar, courear, cavalgar, arrebanhar, vigiar etc., permitindo a apropriação por parte dos peões das qualidades dos gaúchos.
O mito do bom gaúcho
Possivelmente, o mito do bom gaúcho tenha surgido de uma forma paralela e concomitante, acompanhando a evolução de outro mito da historiografia sul-rio-grandense: a democracia pastoril.
De uma maneira geral, a historiografia tradicional do Rio Grande do Sul apresenta uma sociedade homogeneizada, onde a atividade pastoril imprime traços característicos especiais ao gaúcho, de simplicidade e igualdade. Onde todos cultivam os mesmo ideais, hábitos e costumes. Em um ambiente que não tem diferenças sociais, o esforço é o trabalho comum entre latifundiários e seus servidores. Gerando homens leais e corajosos, dispostos a qualquer ato de heroísmo ou bravura pelo bem comum.
No contexto do desenvolvimento da sociedade pastoril latifundiária do século 19, onde o fazendeiro, dono da estância, era, de acordo com o mito da democracia pastoril, benevolente até mesmo com seus trabalhadores escravizados, aos poucos, de uma forma lenta e gradual, o mito ideológico do bom gaúcho foi sendo construído, desconsiderando as características do gaúcho histórico, suprimindo os seus defeitos e preservando as suas qualidades.
Decretou-se a morte do gaúcho real e, de suas cinzas, como uma fênix grega, renasceu o gaúcho sul-rio-grandense idealizado – romanceado. Um trabalhador sincero, franco, bondoso, honesto, servil, ético, patriótico, etc. um exemplo de dedicação ao estancieiro.
O gaúcho idealizado
O gaúcho apareceu, na sua feição primitiva, em terras do rio da Prata. E começou a esboçar-se, como tipo social, a partir de 1536, data da primeira fundação de Buenos Aires. Apesar de existirem traços comuns entre os gaúchos que vagueavam na região platina, como o cavalo e o boi; a carne assada e o mate amargo; o couro e o sebo; o luxo dos aperos e outros apetrechos de montaria; indumentárias de uso comum – chiripá; armas – a faca, a lança e as boleadeiras – etc., a historiografia tradicional sul-rio-grandense defendeu, e defende com unhas e dentes, que naquela região existiriam três tipos de gaúchos: o argentino, o uruguaio e o rio-grandense.
Escorando-se no mito da democracia pastoril, a figura do bom gaúcho sul-rio-grandense começou a ser construída na literatura romântica, em 1868, tendo o jornalista e professor Apolinário Porto Alegre como um dos principais construtores desse mito. Apolinário foi um personagem atuante na literatura sul-rio-grandense do século 19. Foi poeta, contista, romancista, dramaturgo, ensaísta, pesquisador, crítico literário etc., e um dos principais fundadores do Partenon Literário.
O Paternon literário foi fundado em 1868 por literatos liberais, republicanos e abolicionistas de Porto Alegre, entre eles Apolinário Porto Alegre e o romancista Caldre e Fião, com o objetivo de agregar intelectuais para discutir filosofia, política, cultura e comportamento e sociedade.
A tese orientadora do “bom gaúcho” provavelmente tem origem nas elaborações do tradicionalista Antônio Augusto Fagundes, por volta de 1940, que escreveu sobre os hábitos e costumes diferenciados dos gaúchos sul-rio-grandenses, em relação aos diferentes tipos de gaúchos que vagueavam pelos campos da região platina.
O eixo central das elaborações apresenta o gaúcho dos pampas do Rio Grande do Sul como um homem honrado, destemido, bondoso, valente, franco, defensor da pátria, honesto, etc. Ataca ferozmente a visão pangauchista e, sobretudo, os historiadores que andam em busca do gaúcho real.
Sem chefes, sem lei, sem polícia
Enquanto os gaúchos da banda de cá eram enaltecidos pelos literatos sul-rio-grandenses como sinônimo de liberdade, honradez, valentia, bravura, hospitaleiros, responsáveis, honrados, violentos apenas quando “lhe pisavam no poncho”, o gaucho da banda de lá – Argentina, Uruguai e Paraguai – eram estereotipados como selvagens, violentos, assassinos, ladrões de gado, saqueadores, mulherengos, bêbados, jogadores, irresponsáveis etc. apesar de que, na sua origem, possuíssem as mesmas características.
Os gaúchos construíram um modo de vida próprio, um grupo social que vivia sem chefes, sem leis, sem polícia. A desobediência dos gaúchos das normas e regulamentações vigentes, sua relutância em se estabelecer definitivamente, despertou nos estancieiros da região platina, à vontade de enquadrá-los no modelo de organização social existente. Os estancieiros na tentativa de refrear o modo de vida dos gaúchos impunham regramentos inócuos, sem efeito prático, aos bolicheiros, como fechar o estabelecimento aos domingos, proibição dos jogos de cartas, da venda de bebidas alcoólicas.
Gaúchos diversos e difusos
Na tentativa de encontrar uma justificação plausível para diferenciar o bom gaúcho sul-rio-grandense do mau gaúcho que vagueava pelos pampas da Argentina, Uruguai e Paraguai, criou-se um processo evolutivo de gaúcho: gaudérios, guaso, gaucho, gaúcho. A figura do pré-gaúcho exerceu importante papel na construção do mito do bom gaúcho. No começo o conceito gaúcho era muito vago. Por ser vago açambarcava todos os errantes e vagos dos pampas platinos – gaudérios, changadores, guapos, gaúcho malo, gauchos e gaúchos – sob sua guarda. Em regra, os adjetivos que acompanhavam o personagem eram depreciativos.
No entanto, nos relatos dos viajantes que aqui estiveram, e presenciaram in loco o modo de vida daquele ser de disposições taciturnas e apáticas, todos eram nascidos na região platina, tocavam muito mal uma guitarra, cantavam desafinadamente, caçavam gado com suas boleadeiras e lanças, comiam carne assada, dormiam ao relento, eram bons cavaleiros, usavam botas, esporas de latão, sombrero, poncho, chiripá, ganhavam dinheiro com o contrabando de couro, não tinham patrão, não trabalhavam a terra, não sabiam o que era governo, freqüentavam bolichos-pulperias onde jogavam, bebiam aguardente e se divertiam com as mulheres.
A historiografia tradicional sul-rio-grandense tratou de diferenciar cada um deles. Os de boa índole, os bons, habitavam única e exclusivamente os pampas do Rio Grande do Sul. Os de má índole, os maus e os feios – gaudério, guapo, gaúcho malo, gaúcho etc. – habitavam os territórios pampeanos do Paraguai, Uruguai e Argentina.
Utilizando este expediente, sem sequer ficarem enrubescidos, nossos historiadores tradicionais determinaram que o gaúcho violento, mau caráter, ladrão de gado, eterno inimigo da sociedade, indomável, aventureiro, jogador. etc. pertencia às populações castelhanas. Por outro lado, o gaúcho do Rio Grande do Sul era sóbrio e ordeiro. Um exemplo!
Todos gaúchos platinos
Apesar dos criadores do mito do bom gaúcho sul-rio-grandense terem e continuarem se esforçando ao máximo para tentar sustentar a surrada tese, justificando esta tentativa de diferenciação em gaúchos diversos e difusos como gaudério, guapo, gaúcho malo, todos adjetivos que identificam o gaúcho da banda de lá, ou seja, o mau gaúcho, criando, inclusive, numa concepção darwinista, a existência do pré-gaúcho, não há mais espaço para negar que o gaúcho do Rio Grande do Sul era o mesmo gaucho da região platina.
O gaúcho real morreu com o cercamento dos campos em 1870. A cerca transformou o gaúcho em invasor. O roubo do gado, que nas palavras do viajante francês August Saint-Hilaire, que esteve nos pampas do RS em 1820, era considerado como “cousa legítima”, passou a ser tratado como crime de abigeato passível de condenação pela justiça. O gaúcho ultrapassava a cerca, caçava o gado e era preso e condenado.
Aos poucos, com a evolução da atividade pastoril latifundiária na região do Prata, a estância foi engolindo o gaúcho real, reduzindo seu espaço vitalício, demarcando os pampas sul-rio-grandense e platino e, o seu lugar foi tomado pelo peão de estância, que possuía algumas características dos gaúchos como agilidade no laço, bons nas lides campeiras e no cavalo mas que não era o gaúcho histórico, pois o peão de estância aceitava de uma forma passiva e submissa a exploração da sua força de trabalho pelo latifundiário.
Acordo historiográfico há quando se trata da origem do gaúcho. Não há acordo quando se trata da possível diferenciação existente entre as características do gaúcho da região platina com o gaúcho do Rio Grande do Sul. O gaúcho – gaúcho era o ser errante e vago que, no lombo de um cavalo, portando apenas suas armas para caçar e se defender, campeava pelos campos da região do Prata tendo uma vastidão ao seu alcance. E as autoridades do Rio Grande do Sul insistem em enaltecer, anualmente, em setembro, durante a Semana Farroupilha, a eternização do mito.
Referências
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