Quem encontra a Deus sossega. A questão é, existirá um
objeto mais abstrato do que Deus e, portanto, mais instigador do desejo?
Será Deus a satisfação dos desejos, ou será ele um outro nome
para dizer da insatisfação de todas as satisfações?
Já se definiu o homem de muitas formas. “O homem é um animal racional” (Aristóteles). “O homem é um bípede implume (Platão). O homem é o lobo do próprio homem (Hobbes). “O homem é aquilo que come” (Feuerbach) “O homem é a imagem de Deus” (Bíblia). O homem é um ser cuja existência precede a essência (Heidegger). O homem é um caniço pensante (Pascal) etc.
Eu gosto de uma outra definição, sem autoria, mas que todo intelectual que se preze, utiliza: “o homem é um animal que deseja o desejo”.
Clóvis de Barros Filho – busca incessante pela felicidade.
Ninguém expressou melhor a natureza do desejo do que Platão, no livro o Banquete. O Banquete é um livro em forma de diálogo e os personagens dialogantes, cada um a seu modo, fazem discursos e elogios ao Amor (Eros).
Dois desses discursos são paradigmáticos para entender o desejo e, por tabela, compreender o ser humano. O primeiro é o discurso do poeta satírico Aristófanes, e o segundo, é o discurso do filósofo Sócrates.
Aristófanes, para falar do amor, conta um mito, o mito do andrógino. Sempre que se conta mitos pretende-se remontar às origens, num tempo imemorável do início das coisas. No caso do mito do andrógino, trata-se do início da humanidade. Aristófanes diz que no começo, lá no início, bem no início, nós éramos de três gêneros, o masculino o feminino e o andrógino. O terceiro ser, o andrógino, era um ser redondinho, duplo, perfeito, nada faltava e nada sobrava. Tudo duplo: duas cabeças, quatro pernas, quatro braços, quatro olhos, quatro orelhas e de duplo sexo. Se movimentava rapidamente como uma bola com pernas. Os deuses olharam para esse ser e perceberam que havia na terra um concorrente à altura aos deuses do céu. E ficaram assustados…
Zeus, então, pensou em matar esse ser, concorrente na perfeição com os deuses. Mas, matar, significaria eliminar alguém que os adorariam. E o que são os deuses sem alguém que os adorem? Pensando melhor, Zeus, o chefão dos deuses, decidiu enfraquecer o andrógino, cortando ao meio. Zeus corta-o e Apolo, o deus da ciência e da medicina, costura-o, ajuntando e ajustando a pele até o último ponto onde se forma o umbigo.
Como o ser tinha os olhos virados para fora, então Apolo vira a cabeça e os olhos para o lado do umbigo, para nunca esquecer que somos seres cortados. Se lá no início o ser duplo era duplo masculino, então agora o homem busca sua outra metade em outro homem. Se o duplo era masculino e feminino, então a relação agora será heterossexual. Se o ser duplo era duplo feminino, então a mulher desejará outra mulher. O que o mito uniu, não desuna o homem…!
Dito isto, Aristófanes tira as conclusões dizendo que o Amor é o encontro com a outra metade. O amor é o encontro com alma gêmea, que um dia foi uma coisa só, mas agora separada, vive vagando pelo mundo com saudade do abraço da outra metade. Quando acontece o reencontro, aí o amor acontece no grau pleno e de pura satisfação, felicidade e êxtase. O objeto do amor é a outra metade e quando se encontra o objeto do amor, o amor acontece e cessa a busca.
Sócrates, por sua vez, ao falar do Amor, também conta um mito e tira as conclusões. Quando Afrodite, deusa da beleza, nasceu, diz Sócrates, os deuses fizeram uma grande festa nos céus. Convidaram todos os deuses para a festa, menos a deusa Pênia. Quando a festa acaba, Pênia entra de penetra na festa, come os restos de comida e toma os restos de bebida e, quando satisfeita, dá uma passeada entre os festejantes e vê Poros, deitado e embriagado. Pênia se sentiu atraída por Poros, deita ao seu lado, se conhecem sexualmente e dessa relação nasce Eros, o Amor. Eros é, pois, filho de Pênia e Poros. Pênia significa, carência, falta, pobreza, daí advém a palavra penúria que significa exatamente sofrimento por conta da falta de condições materiais da vida. Poros significa astúcia, engenho e completude. Eros, diz Sócrates, herda da mãe a falta, a carência e herda do pai a astúcia para suprir a falta e a carência.
Por conta disso quem ama vive maquinando jeitos de conquistar o objeto amado, mas também por conta disso o amor é sempre carente, porque amor daquilo que nos falta. Ora, aquilo que nos falta nós desejamos e só desejamos e amamos porque não possuímos, pois se possuíssemos já não desejaríamos e desejaríamos outra coisa.
Moral da história. Diferentemente de Aristófanes que diz que o amor é satisfação no encontro com o objeto amado, Sócrates diz que o amor é desejo e desejo é desejo de algo que nos falta. Acontece que não há objeto que satisfaça o desejo, e o próprio Sócrates diz que há uma escalada de desejos passando de um corpo belo físico e particular, ascendendo para os belos corpos, avançando para as ciências do belo e para o Belo em si…! Amar é, pois, adiar constantemente a satisfação, porque na medida em que se alcança o objeto amado, deseja-se outra coisa e outra coisa e outra coisa, sem fim…
Disso advém todas as violências por desejos miméticos, pois sempre que desejamos o mesmo objeto do outro, entramos em rivalidade que leva a violências sem fim. Mas não só.
O mais profundo é que não somente desejamos o objeto do desejo do outro, mas desejamos o desejo do outro que deseja objetos, enredando-nos numa espiral sem fim de insatisfações e ilusões vindas dos mercados do desejo que o capitalismo muito bem sabe organizar.
Talvez seja oportuno apontar aqui para outra direção, a direção mística e religiosa. Sabendo que os desejos nos essencializam e são infinitos e insatisfeitos, as tradições místicas e religiosas, sabiamente, dizem que há um único objeto do desejo capaz de pacificar a busca incessante por sentido: Deus.
Quem encontra a Deus sossega. A questão é, existirá um objeto mais abstrato do que Deus e, portanto, mais instigador do desejo? Será Deus a satisfação dos desejos, ou será ele um outro nome para dizer da insatisfação de todas as satisfações?