Diferente: respeitar ou caçoar?

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O diferente não deve ser encarado como algo pejorativo, principalmente, na linguagem. O diferente deve ser encarado como algo que traz a alma, a riqueza popular através da língua.

A língua ao longo da história foi usada como ferramenta para excluir e para dar prestígio e continua sendo um mecanismo que permite refletir os aspectos linguísticos na sociedade e como eles são encarados. Fazemos uma distinção entre língua e linguagem para sermos fiéis aos estudos linguísticos.

Dessa forma, trataremos de LÍNGUA quando fazemos referência ao código linguístico convencionado por uma comunidade de falantes, ou seja, sistema de representação e de LINGUAGEM quando nos referimos à língua em uso, ou seja, a efetivação da língua, quando colocamos o sistema em prática através de arranjos individuais[1]. Ou podemos tratar a linguagem como atividade humana que resulta em experiências significativas na e pela linguagem.

Nos estudos linguísticos, encontramos ancoragem para a discussão que trazemos. A Sociolinguística entende que a efetivação da língua se dá através de variações linguísticas, pois não há como estabelecer um padrão único, porém essas variantes que resultam de privação de acesso à escolarização, gênero, faixa etária e regionalismo, que podem causar estranhamento por partes de alguns falantes que elegem como padrão uma variante linguística, inclusive acarretando na discriminação.

Assim, SANTANA, 2018, p.39[2], afirma que esses falantes e ouvintes têm na sua perspectiva e visão de mundo a base para os julgamentos e usos que fazem em relação às variantes linguísticas. Esse autor que citei anteriormente é meu amigo e é com ele que travamos diversas discussões sobre linguagem.

Em se tratando em linguagem, o que incomoda é o diferente, como bem fala meu amigo, Wenderson Phelipe da Silva Santana, brasileiro, linguista, Programador de Linguagem da Google na Inglaterra: “Qualquer pessoa que sai do seu ambiente, da sua comunidade de prática da língua e entra numa outra diferente, vai sofrer o preconceito por ser diferente”. Isso é tão verdadeiro porque se olharmos ao redor teremos fatos relacionados a isso para contar.

Ele enfatiza mais, dizendo: “Mesmo a pessoa que migra de uma região que usa uma variante considerada padrão da língua, ela também vai sofrer se ela for para um lugar diferente daquele”.  Nessa declaração podemos perceber como a linguagem é em diferentes contextos passível de discriminação.

SANTANA, como grande estudioso e conhecedor da linguagem que tem se dedicado ao trabalho com a linguagem, traz um exemplo: “uma pessoa que sai de uma cidade grande, São Paulo, e vai para o interior do Rio Grande do Sul. Essa pessoa  nasceu e cresceu lá, mas por motivos familiares veio para  Marau, por exemplo, cidade que predomina a colonização italiana, ela também sofre por falar leiti quenti e pensar que essa forma é “a mais padrão do português do Brasil”.

O exemplo que Santana nos traz é o que chamamos na Sociolinguística de juízo de valor social distinto que os falantes fazem do seu próprio comportamento linguístico e sobre o dos outros. E esse comportamento pode acarretar numa discriminação linguística.  SANTANA,  argumenta a respeito disso: “se você olhar na TV, é imposta uma variante tida como a forma padrão aceita no país, considerando outras variantes como pejorativas. E no exemplo acima, mesmo a pessoa que tinha no seu vernáculo essa forma mais prestigiosa, saiu daquele lugar, ainda assim, foi caçoada porque era diferente”.

Nós, que estudamos a língua, sabemos que não há padrão e que na língua em uso teremos muitas variantes e elas devem ser aceitas e respeitadas, porém, infelizmente, a linguagem serve para provocar muitas humilhações.

Eu mesmo quando saí da comunidade do interior e comecei meus estudos com muita dificuldade na Escola Estadual São José de Constantina, enfrentei na pele isso por falar mio, foia, fumo e vortemo. Isso é tão traumático para um adolescente que a cada dia brotava dentro de mim a vontade de estudar muito para alcançar uma “fala correta”.  É claro que o próprio estudo em minha vida fez com que eu entendesse muito mais das variações linguísticas percebendo que o meu falar era apenas uma variante da língua portuguesa, marcando a identidade de uma comunidade retirada de tudo, inclusive privado de acesso economicamente. 

Na minha dissertação de mestrado fui orientado pela banca para clarear o termo “fala correta”, porque hoje também como estudioso da língua sei que isso não existe, que todas as variantes devem ser respeitadas.

Sabemos que na língua há duas relações principais que são estabelecidas: falante-língua e falante-outro. A relação falante-língua constitui-se dos dizeres dos outros na experiência significativa na e pela linguagem que, neste caso poderá ser positiva ou traumática, com isso, o falante vivencia e se constitui enquanto sujeito por essa experiência.

Na relação falante-outro remete a inter-relação de um eu e um tu, condição essencial para que a língua se efetive numa atmosfera linguística. Esse tu trazemos aqui como outro, que sem ele não há possibilidade de efetivação da língua, que resulta dessa relação significativa do falante-outro que fala/emite/ouve/percebe. E é nessa relação que poderá surgir o preconceito linguístico.

No caso de um menino que nasceu no interior, de uma comunidade pobre, num lugar onde as dificuldades financeiras imperavam, a sua variante linguística, por certo, não será de “prestígio” ao sair deste ambiente e migrar para uma escola maior, sofrerá retaliações por ser um falar diferente, porque como diz meu Santana, “o que incomoda é o diferente”, e ele vai querer abortar sua variante para não vivenciar essa experiência traumática na e pela linguagem.

No mês de junho, tradicionalmente, as escolas enfatizam nas comemorações juninas a linguagem caipira e acabam por produzir o preconceito de uma variante linguística tida como desprestigiada, faz-se chacotas de um falar existente encontrado nas comunidades retiradas, como se esses falantes não dominassem o “vernáculo padrão”.

No mês de junho, escolas e alunos reúnem-se para fazer apresentações para a comunidade escolar. Realizam-se apresentações como teatros e danças “típicas”. Se olharmos pelo lado da expressão corporal, até isso colaborará para o desenvolvimento intelectual, corporal e linguístico. Agora se pergunta: como são feitas estas expressões? A que se refere à vestimenta? A vestimenta é tipicamente remendada, rasgada e “fora de moda”. Na cabeça usa-se um chapéu grande, e, na maioria das vezes, rasgado. Leia mais!

O agravante dessas “comemorações” está na brincadeira discriminatória da linguagem, porém o que mais impressiona que isso tudo é associado a uma vestimenta rasgada, remendada, chapéu de palha, que incentiva o preconceito de uma classe social que está à margem da sociedade sem acesso digno.

São essas pessoas que produzem o alimento na agricultura familiar e são tidas como motivo para risos. E por que se pinta o dente para dizer que está cariado? Essas atitudes deveriam ser banidas, principalmente, das escolas, onde são tidas como lugar para respeitar e acolher os diferentes, acabam enfatizando a distinção entre seres sociais. Os dentes cariados representam um constitutivo da linguagem preconceituosa usada, pois está a prova que muitas pessoas não têm o mínimo direito numa sociedade desigual, enquanto uns colocam lentes de porcelanas, muitos trabalhadores tisnados do sol, perdem seus dentes por não ter acesso ao básico para sua saúde.

As escolas deveriam enfatizar nas danças, nas quadrilhas regionais e banir este “estilo”, “mania” de deboche advindo da linguagem e que traz um conjunto de discriminação sociolinguística.

Portanto, a linguagem não pode servir como pretexto para excluir. Não podemos admitir que o diferente linguístico sofra discriminação, tendo a linguagem como veículo do preconceito linguístico. Essa relação falante-língua, falante-outro tem de resultar uma experiência significativa do ponto de vista positivo na e pela linguagem, pois os falares  representam a cultura de um povo, as variantes linguísticas trazem um histórico que devem ser respeitadas.

O diferente não deve ser encarado como algo pejorativo, principalmente, na linguagem. O diferente deve ser encarado como algo que traz a alma, a riqueza popular através da língua.

Referências Bibliográficas

DIEDRICH, Marlete Sandra. Aquisição da linguagem: o aspecto vocal da enunciação na experiência da criança na linguagem. 2015. 148f. Tese (Doutorado em Estudos da Linguagem) – Programa de Pós-graduação em Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2015.

______. A criança e sua relação com a interdição: a mobilização de arranjos discursivos particulares. Revista Desenredo, 2018, Passo Fundo, v. 14, n. 3.

______. O poético que se instaura no vocal: a experiência da criança na linguagem. Revista Desenredo, 2020, Passo Fundo, v.16, n. 1, p. 114-126, jan./abr. 2020.

SANTANA, Wenderson Phelipe da Silva. Variação de gênero gramatical
como indexador de identidade gay. Dissertação de Mestrado, Orientadora Edair Maria Gorsky. Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2018.

[1] Conceito usado pela linguista da Universidade de Passo Fundo, Professora Dra. Marlete Sandra Diedrich

[2] Citação tirada da Dissertação de Mestrado Variação de gênero gramatical
como indexador de identidade gay. SANTANA, 2018, p.39.

Autor: Laércio Fernandes dos Santos

Edição: Alex Rosset

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