Difíceis Tempos de Democracia

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Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto por que eles são pobres, chamam-me de comunista. (Dom Helder Câmara)

Durante governos do PT, vivenciei episódios com pessoas de minha convivência social, os quais suscitaram insultos, xingamentos e destilação de ódio. Porém, até hoje, mantenho relações de convivência distantes com elas.

Esta onda de radicalização das posições e posturas acentuou-se, por boa parte da população brasileira, desde que o PT foi criado e, principalmente, quando demonstrou capilaridade eleitoral governando o país, fortalecendo na política e na gestão pública os benefícios e direitos sociais.

O governo de Bolsonaro, que acaba mudo e melancólico, contribuiu à afirmação da estupidez e da ignorância como virtudes, em todos os recantos deste país. Ou, pelo menos, tornou mais visível esta percepção. Seguiu uma lógica de refinamento e afirmação da violência, alardeada por um Capitão desta empreitada, em que adversários da política e das ideologias passaram a ser tratados como inimigos a serem duramente combatidos.

Nesta ótica, é preciso fazer esforços para compreender que há razões mais profundas, inclusive anteriores ao governo Bolsonaro, que permitem entender o contexto atual de “iminente ruptura” em que o Brasil foi colocado. É o que se tentará fazer, considerando os episódios que serão relatados a seguir.

O primeiro episódio ocorreu há duas décadas. Ocorreu num jantar, numa discussão com um jovem médico, que trabalhava no setor de estatística de um hospital.

Era tempo de Natal. A conversa envolveu a realidade social da população, num momento em que o Brasil passava a implantar programas de combate à fome e promoção da cidadania.

O médico dizia, exaltado, que “pobre é pobre porque quer”. Que a sociedade dá a todos as condições de vida e trabalho e que muitos não querem ou não desejam trabalhar, porque são vagabundos. Na sua concepção, é a classe média que sustenta e paga os impostos deste país, mas a mesma não é reconhecida e, como sempre, sacrificada. Disse, sem provas, que teria como atestar a situação dos pobres a que se referia.

Contrariando sua tese, argumentou-se sobre a importância dos benefícios sociais, pela inclusão dos desassistidos na economia, pela questão humanitária de permitir que milhões de brasileiros e brasileiras pudessem usufruir mais de uma refeição por dia. Em vão!

No calor da discussão, lhe disse: “eu não entendo esta sua raiva e ódio pelo simples fato de você saber que irmãos e irmãs tem um pouco mais de dignidade a partir de um prato de comida. Você está perdendo humanidade com esta sua raiva e ódio aos pobres”.

A janta e a conversa acabaram por aí. Reinou silêncio!

O segundo episódio, ocorreu numa revenda de carros. Foi muito tenso e agressivo, num momento de um cafezinho. Ao me avistar, o dono da loja, protagonizou uma sucessão de horrores e insultos. Minha presença representava um desconforto, uma agressão tamanha que ele perdeu o controle da situação. Por quê? Ele sabia dos meus posicionamentos à esquerda e da minha defesa aos mais pobres. Gritou, ofendeu, humilhou e chegou a cuspir, perdendo o controle de sua raiva e de suas emoções. Não restou outra alternativa senão minha sutil retirada.

Tempos depois, percebi que episódios similares continuaram replicados, geometricamente.

O terceiro episódio ocorreu numa visita que fiz a um gerente de uma concessionária de carros. O setor automobilístico vivia um verdadeiro “boom” no país. Na ocasião, eu precisava de apoio para um curso de qualificação profissional: uma visita técnica e prática para Curso de Revenda de Peças automotivas. Era um tempo em que o Governo Federal e a Prefeitura Municipal executavam um programa de qualificação profissional dirigido aos jovens.

Depois da minha apresentação, quando o gerente percebeu que se tratava de política social, pediu-me um tempo para ouvi-lo. Aceitei. De repente, vociferou contra Programa de nome “Menor Aprendiz”, dizendo que empresários sempre são os crucificados, pois precisam entrar com contrapartidas e que os governos só exploram quem trabalha e paga impostos. Concluiu que era um absurdo contratar jovens aprendizes, para fins de ajudar e promover o governo.

Contrariado, dei-lhe razão aos argumentos. Ousei perguntar-lhe sobre a possibilidade de liberar um funcionário para explicar aos jovens, em visita in loco, sobre o funcionamento prático de uma loja de peças automotivas. Ao que ele disse “Sim”.

Pela terceira vez, pude sentir a fúria de quem não tem sensibilidade pelos mais empobrecidos, pois só veem seus próprios interesses.

Depois dos breves relatos, seguem questões que desejamos destacar. Primeiramente, sobre silenciamento. Pergunto: quantos brasileiros e brasileiras foram silenciados ao longo das últimas décadas pelo fato de defenderem a dignidade humana e mais e melhores oportunidades de vida? Enquanto eram silenciados, crescia o ímpeto de os aniquilar, de negar a sua existência, mesmo quando a realidade continuava a revelar a negação dos direitos da maioria da população brasileira.

Com Bolsonaro, ampliaram-se as formas de silenciamento e criou-se maior legitimidade pública para enfrentamentos fora dos padrões civilizatórios, inclusive com sinalização ao uso da violência e das armas.

“O que me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons”.  (Martin Luther King)

Queremos refletir também sobre o quanto a negação dos direitos sociais neste país se constitui como algo naturalizado.

Considerando-se os episódios relatados acima, é facilmente perceptível do quanto são indicativos do quanto o atendimento à justiça social incomoda à elite brasileira.

 Para a superação deste dilema social, será preciso muita educação e engajamento social para que a concretude da justiça social não seja considerada mera bondade dos governantes, mas um direito e uma garantia do Estado para a sua população.

Nossa realidade social brasileira é cruel e pouco inclusiva. Desejamos que o Brasil seja um lugar de vivência e reconhecimento dos direitos humanos e sociais.

Mudanças serão necessárias

Será necessário mudar estruturas do Estado e mentalidade das pessoas para vejamos os milhões de brasileiros e brasileiras como a maior riqueza desta nação! Resgatar cidadania e políticas públicas, a partir da participação e envolvimento direto dos cidadãos e cidadãs. Envolver toda a sociedade para que políticas sociais cheguem a quem verdadeiramente mais precisa. Afirmar e promover uma sociedade que seja capaz de entender o verdadeiro sentido de direitos humanos e sociais.

Se quisermos democracia, de fato e de direito, precisamos traduzi-la em cidadania plena e real; direitos não podem continuar sendo apenas letras da Constituição.

Por fim, imprescindível lutarmos com mais esperança, resistência, juízo e solidariedade para ajudar o Brasil a mudar, com mais consistência, o seu próprio olhar sobre suas gentes.

“Assim nascem os direitos humanos: como afirmação de que os/as humanos/as de quem se fala que têm direitos são todos/as. Daí porque, falar de direitos humanos é, acima de tudo, não pactuar com quem aceita a possibilidade de algum/a humano/a não caber entre os/as humanos/as”. (Paulo César Carbonari) Leia mais: https://www.neipies.com/fragilidade-dos-direitos-humanos/

Autor: Nei Alberto Pies

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