Ao completar 70 anos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos
é alvo de ameaças e impõe desafios para que seu
conteúdo seja respeitado no cotidiano.

 

Gabriela não conseguiu atravessar a fila de embarque no aeroporto usando as vestes da sua religião. Júlia, branca, viu seu filho negro ser barrado na porta de um banco. Gustavo foi espancado na rua porque trajava a camisa de seu time do peito. Marina quase desistiu da bolsa a que tinha direito em uma universidade particular por conta da gozação e zombaria de que era vítima diariamente. E Vítor, de 8 anos e portador de uma alergia alimentar severa e múltipla, precisou recorrer a uma rede de amigos para conseguir comprar o leite caríssimo de que necessita porque desde junho o Estado parou de lhe fornecer. Nas próximas páginas, você vai conhecer as histórias de quatro brasileiros e uma argentina que foram feridos em sua dignidade — dignidade que é o grande valor por trás dos 30 artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que completa 70 anos em dezembro, em meio a uma onda de desrespeito ao seu conteúdo e ameaças que põem o mundo em estado de alerta. Acontece quando você menos espera, nas pequenas violações cotidianas, e nas imensas, a exemplo do horror vivido por populações submetidas a torturas, execuções, selvagerias, violências de qualquer espécie. Aconteceu com eles. Poderia ser com você.

Direitos humanos são para todos os humanos, afirma Juana Kweitel, diretora executiva do Conectas, uma organização não governamental que atua no Brasil desde 2001 em defesa da igualdade de direitos. Apesar de, nos últimos anos, a expressão vir ganhando um sentido pejorativo e da insistência em associá-la apenas à pauta da segurança, Juana faz questão de frisar que direitos humanos tem que ser algo que diga respeito ao cotidiano. “A gente precisa pensar, falar, discutir, conversar sobre isso rotineiramente para reverter uma realidade que é profundamente desigual”, acredita.

Numa definição didática, a ONU explica que os direitos humanos são inerentes a cada pessoa, simplesmente por ela ser humana, independente de raça, sexo, nacionalidade, etnia, idioma, religião ou qualquer outra condição. São direitos aos quais todos — sem distinção de onde nasce, como vive e a que classe social pertence — deveriam ter acesso. Trata-se do direito à vida, antes de tudo, mas também à segurança, à saúde, à moradia, à alimentação, ao trabalho, a expressar livremente suas opiniões. “Eles promovem valores fundamentais como a dignidade, a liberdade e a igualdade”, reforça Maria Helena Barros, coordenadora do Departamento de Direitos Humanos, Saúde e Diversidade Cultural da Fiocruz (DIHS). “E é importante resgatar esses princípios até para corrigir equívocos que foram sendo construídos ao longo dos anos e que contaminaram negativamente a concepção de direitos humanos”.

Para Paulo César Carbonari, coordenador geral da Comissão de Direitos Humanos de Passo Fundo (CDHPF), lutar pelos direitos humanos hoje coloca a todos novos desafios. Programa Estúdio 4, TVUPF, da Universidade de Passo Fundo.

 

VERSÕES DISTORCIDAS

Quantas vezes você já ouviu a frase: “Direitos humanos são para humanos direitos”? Ou numa versão ainda mais antagônica do conceito: “Direitos humanos só servem para proteger bandido?” Esse tipo de raciocínio ganhou adeptos e tem se configura – do como uma tendência no mundo inteiro. No Brasil, os dados são alarmantes. De acordo com pesquisa do Instituto Ipsos divulgada em agosto, seis em cada 10 brasileiros acham que “os direitos humanos apenas beneficiam pessoas que não os merecem, como criminosos e terroristas”. Entre os entrevistados, 21% chegam a se manifestar “contra” à mera existência dos direitos humanos. Outros 28% afirmam: “Direitos humanos não significam nada no meu cotidiano”. Nesse quesito, o número de brasileiros que pensa dessa maneira fica atrás apenas dos ouvidos na Arábia Saudita e na Índia.

Na verdade, a Declaração Universal dos Direitos Humanos é um texto histórico aprovado às 23 horas e 56 minutos do dia 10 de dezembro de 1948, em Paris, por 48 votos a 0, durante sessão da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU). Em um planeta recém-saído do trauma da Segunda Guerra Mundial, a comunidade internacional decidiu assumir, em um documento único, o compromisso com valores básicos do ser humano a fim de impedir que aquele tipo de atrocidade voltasse a se repetir. Elaborada ao longo de dois anos, a Declaração afirma em seu preâmbulo que “o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros” e propõe “o advento de um mundo em que todos gozem da liberdade de palavra, de crença, e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade”.

Diz o artigo primeiro que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”. Ao lado dos outros 29, compõe um conjunto de artigos indivisíveis, inter-relacionados e interdependentes, uma vez que na prática a violação de um direito vai afetar o respeito por outro. Com essa dimensão, os direitos humanos foram incorporados às leis constitucionais e convenções de 193 países. Sem a barreira da língua — o texto foi traduzido para mais de 500 idiomas —, o objetivo do documento era o de gerar um conjunto de ações e tratados para que os direitos humanos fossem efetivamente assegurados em escala mundial. Setenta anos depois, essa não tem sido tarefa simples.

Considerada por muitos como o marco do processo civilizatório da humanidade, como alerta o sanitarista e ex-ministro da Saúde, José Gomes Temporão, a Declaração se aplica a todos indistintamente, inclusive àqueles que por algum motivo transgrediram a norma legal e cometeram crimes. O artigo 9 assume que “ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado”, e o artigo 11, que “todo ser humano tem direito, em plena liberdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial”. Mas isso nem de longe pode ser motivo, reforça Temporão, para que uma boa parcela dos brasileiros — 66% ou dois em cada três entrevistados, ainda de acordo com pesquisa da Ipsos — julgue que “direitos humanos defendem mais os bandidos que as vítimas”.

Segundo o ex-ministro, essa visão adulterada pode ser compreendida por fatores como o crescimento constante do número de homicídios que atingiu a marca de mais de 60 mil em 2016, e ainda pelo papel da mídia, que por meio de programas de rádio e televisão de caráter sensacionalista, durante décadas, explorou o tema da violência pelo viés policialiesco. “Esses programas acabam disseminando uma visão distorcida de que estaria havendo uma defesa desigual entre os direitos de quem praticou o crime e de quem foi vítima, omitindo que a maior parte dos encarcerados em nosso país cometeu pequenos delitos e que as condições das nossas prisões são um atentado cotidiano aos direitos dos apenados”, disse à Radis. Mas Temporão também não exime o Estado de sua parcela de responsabilidade. “Da Constituição de 1988 para cá, ainda não tivemos governo que tenha de fato implementado uma política efetivamente inovadora nesse campo”.

Para o vice-presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos, Darci Frigo, não foi por acaso que os grandes veículos de comunicação deixaram de aprofundar a discussão sobre o real significado de direitos humanos. Houve um esvaziamento do conteúdo, comenta Frigo, para impedir que os direitos sociais, econômicos, culturais e ambientais fossem também compreendidos como direitos humanos e exigidos na sua extensão para todas as pessoas. Na opinião do advogado, que também coordena a ONG Terra Direitos, os avanços obtidos pela humanidade desde a assinatura da Declaração estão ameaçados pelas forças neoliberais e conservadoras e, na atual conjuntura global, pelo advento do neofascismo, um perigo que faz parecer à população que direitos humanos não são uma prioridade.

“No fundo, isso é uma reação à possibilidade de que todas as pessoas tenham esses direitos reconhecidos”, aponta o advogado. Talvez valha ficar atento a um outro dado revelado pela pesquisa, segundo o qual 69% dos brasileiros consideram importante que haja uma lei para protegê-los. “As pessoas dizem que são contra os direitos humanos, mas se você pergunta se elas acham que têm direito à moradia digna, a trabalho, à educação, elas vão dizer que sim”, esclarece Frigo. “Ou seja, elas podem até não compreender, mas tudo isso é direito humano básico”.

 

E A SAÚDE COM ISTO?

Na mesma pesquisa do Instituto Ipsos, 63% dos brasileiros se declaram a favor dos direitos humanos. E quando perguntado “O que significa direitos humanos para você?”, 13% responderam que significa uma saúde de qualidade. Para Temporão, uma abordagem da saúde baseada em direitos humanos quer dizer, em primeiro lugar, que o direito à saúde plena é um dos componentes centrais desse processo. “Ou seja, a saúde não pode ser entendida nem como mercadoria, a ser colocada no mercado, nem como política pública fragmentada ou focalizada para determinados segmentos da sociedade”, indica. “A saúde, por essa compreensão, não admite qualquer tipo de exclusão ou discriminação”.

Desde 2015, a Fiocruz mantém um Departamento de Direitos Humanos, Saúde e Diversidade Cultural (DIHS). A coordenadora do DIHS, Maria Helena Barros, reforça que a discriminação visível ou implícita na prestação de serviços de saúde viola os direitos humanos fundamentais, mas ela argumenta que saúde não deve ser pensada apenas em sua forma biomédica e hospitalar. “Olhar a saúde desde uma perspectiva de direitos humanos é olhar para a violência, a opressão, os vulneráveis”, afirma. “A desigualdade social e tudo o que ela provoca precisam ser entendidos como uma questão de saúde”. A miséria, a fome, a escassez de trabalho, a falta de saneamento básico, o acesso precário à educação, a degradação do meio ambiente são fatores que causam doença e afetam diretamente a saúde das populações.

Para Marcos Besserman, vice-coordenador do DIHS, durante muito tempo se falou sobre os determinantes sociais da saúde — tudo aquilo relacionado às condições em que uma pessoa vive e trabalha — mas sem a abordagem dos direitos humanos. “Assim, ficava mais difícil chegar nas questões de vulnerabilidade social”, diz. Ele chama atenção para o fato de que demorou muito até o mundo perceber que não existe saúde sem direitos humanos. Nem mesmo os Objetivos do Desenvolvimento do Milênio (ODM) — metas pactuadas pelos estados-membros das Nações Unidas para tornar o mundo um lugar mais justo — trataram o assunto com o destaque merecido. O descuido foi corrigido com o lançamento da Agenda 2030 que, com todas as letras, reafirmou a importância da Declaração para que se alcance a erradicação da pobreza e o planeta chegue a outro nível de sustentabilidade na próxima década e meia.

 

CASOS EMBLEMÁTICOS

Para Juana, da Conectas, o maior problema que o Brasil enfrenta em relação aos direitos humanos são as constantes ameaças ao direito à vida e à integridade física. “Não podemos relativizar isso. O Brasil tem um número de homicídios similar ao de países em situação de conflito armado e também níveis de letalidade policial que não se têm em outros países”, adverte. O último relatório da Anistia Internacional, divulgado em março, que traz um inventário dos maiores atentados aos direitos no mundo, é taxativo com os casos brasileiros. Aqui, as ocorrências mais graves ficam por conta do aumento da violência e dos homicídios que afetam principalmente os jovens negros; da força excessiva e desnecessária usada no combate aos protestos de rua; da letalidade policial; e do surgimento de cerca de 200 propostas diferentes de emendas constitucionais, novas leis e modificações da legislação que, de acordo com o relatório, infringem uma série de direitos.

Citada nominalmente no documento como uma ameaça aos direitos humanos, está a lei sancionada por Michel Temer em outubro de 2017, que estabelece foro especial para militar que cometer crime doloso contra civil. Segundo a Anistia, a lei viola o direito a um julgamento justo, já que os tribunais militares no Brasil não garantem a independência judicial. A leitura do relatório sugere ainda que as condições prisionais no Brasil continuam desafiando a cultura de direitos humanos. A superlotação dos presídios e as condições degradantes a que os presos são submetidos foram consideradas “desumanas”. Nas prisões do estado do Rio de Janeiro, por exemplo, as doenças de pele e a tuberculose atingiram, de acordo com a Anistia, proporções epidêmicas, como já havia sinalizado um estudo da Fiocruz de 2017, ao concluir que a taxa de tuberculose em presídios fluminenses é maior que a média nacional. A cada 100 mil presos, cerca de 1.500 têm a doença — contra 932 no geral.

Além disso, o relatório também elenca o perigo que vem sofrendo a comunidade de lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e intersexos no Brasil. O documento lembra a morte da travesti Dandara dos Santos, espancada por 12 pessoas até a morte, em março de 2017, em Fortaleza, e o caso de um juiz do Distrito Federal que, em setembro, autorizou psicólogos a aplicarem práticas antiéticas e prejudiciais conhecidas como “terapias de conversão” para tentar modificar a orientação sexual das pessoas. Segundo a Anistia, essa decisão contribuiu para aumentar o estigma e a violência sofrida por essa população.

Os direitos dos povos indígenas também merecem destaque no relatório. O texto informa que a invasão de madeireiros ilegais e de garimpeiros vem resultando em ataques violentos contra comunidades indígenas. Entre as disputas por terra, a Anistia cita ainda a chacina ocorrida em maio do ano passado na cidade de Pau D’Arco, no Pará, onde morreram 10 trabalhadores rurais. Eles estavam acampados às margens do local e foram mortos a tiros durante uma operação conjunta das polícias civil e militar, que foram à região para cumprir mandados de busca e apreensão. Para Darci Frigo, o recuo das políticas de fortalecimento da agricultura familiar e reforma agrária somado ao crescimento das forças conservadoras e do discurso de ódio no país, teve reflexo imediato no campo, onde a violência, a bem da verdade, nunca cessou. De acordo com a Comissão Pastoral da Terra, só em 2017, ocorreram mais de 70 assassinatos.

Como consequência da violência no campo, o Brasil viu aumentar consideravelmente o ataque aos defensores de direitos humanos, principalmente nessas áreas rurais. Segundo o Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos, uma coalizão da sociedade civil, somente entre janeiro e setembro do ano passado, 62 defensores foram mortos. Todas essas violações levaram o secretário-geral da Anistia Internacional, Salil Shetty, a afirmar que, no aniversário de 70 anos da Declaração, “é perfeitamente claro que nenhum de nós pode considerar que os direitos humanos estejam garantidos”.

 

OS NÃO-HUMANOS

É consenso entre os especialistas ouvidos por Radis que o resultado da aplicação de todos os direitos humanos deve ser a dignidade. Mas, em momentos de crise, quando o mundo parece relativizar o conceito de dignidade humana, todos aqueles que são diferentes passam a ser tratados como inimigo. Em alguma medida, Gabriela, Gustavo, Júlia, Marina e Vitor — os personagens desta reportagem — sentiram isso na pele, a ponto de hoje, alguns deles, por medo ou precaução, preferirem relatar as suas histórias sob pseudônimo. “Pensar um mundo sob a perspectiva dos direitos humanos é tentar garantir a todos oportunidades iguais, respeitando as diferenças entre as pessoas”, diz Marcos Besserman.

O vice-coordenador do DIHS/Fiocruz recorre ao acdêmico Boaventura de Sousa Santos para explicar a situação. De acordo com o sociólogo português, existe uma “linha abissal” separando os seres humanos. De um lado, estão aqueles que têm os seus direitos garantidos e do outro, os que não são dignos sequer dos direitos mínimos. “Essa linha abissal acaba por separar os ‘matáveis’ dos não ‘matáveis’”, acrescenta Marcos. Isso pode ser facilmente verificado quando se observa, por exemplo, a situação dos refugiados, na Europa, e dos migrantes, nos Estados Unidos. E no Brasil, isso está por toda parte. “O problema é que, quando uma pessoa tem direitos, ela não se importa mais com aquelas que não têm direitos”, lamenta o pesquisador. “Para a elite do pensamento do mercado, estas são retiradas da categoria de humanos e passam a ser vistas como não-pessoas”. Ele insiste que é preciso aprender a ter empatia. “É preciso se colocar no lugar do outro. O menino da favela que se alia ao tráfico não é um criminoso de nascença. Nós todos somos um pouco responsáveis quando o Estado e a sociedade não fazem o que deviam fazer”.

Mas que mudanças estruturais podem garantir que os direitos humanos sejam conhecidos e efetivamente respeitados? Para Darci Frigo, um dos caminhos mais promissores é o da educação. Ele considera que os direitos deveriam merecer amplo destaques nos currículos escolares, nas academias de polícia e na formação dos operadores do direito. Juana Kweitel recomenda que sejam uma aspiração de todos. “À medida que esse for um assunto apenas das instituições e organizações de direitos humanos, vamos ter problemas”. Na opinião da coordenadora da Conectas, o Brasil viveu nos últimos dois anos muitos retrocessos. “A gente vinha assistindo a uma rápida militarização da vida pública e, aparentemente, ela pode chegar a níveis muito mais sérios ainda nos próximos anos”, diz. “Penso que nosso papel vai ser documentar esses ataques às instituições que garantem direitos, denunciar e tentar reverter. A sociedade civil como um todo vai ter que sair em defesa disso”.

Marcos Besserman acredita que o ser humano foi capaz de violências extremas e que a Declaração de Direitos Humanos, de alguma maneira, contribuiu para uma sociedade menos perversa. “Mas ainda faltam muitos e muitos degraus pra gente chegar a um nível de convivência mais fraterna e mais solidária, se é que algum dia nós vamos chegar lá”, aposta. Ainda assim, a luta por direitos humanos é o melhor caminho contra a barbárie, ele diz. Maria Helena conclui que a democracia é o único regime capaz de garantir os direitos humanos. “Não é possível falar de uma coisa sem a outra”. No relatório da Anistia Internacional, Salil Shetty, deixa o convite: “[Este ano] oferece uma oportunidade vital de renovarmos o compromisso com a ideia transformadora dos direitos humanos, quando nos perguntamos em que tipo de sociedade queremos viver”. Em que sociedade você quer viver?

 

Publicação originalmente publicada aqui. Assinada pela jornalista Ana Cláudia Peres.

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