Do outro para o Tu: superando a digitalização da vida

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A tecnologia está nos confinando cada vez mais a uma individualidade solitária.

O ser humano é um ser capaz de desenvolver todas as suas potencialidades no encontro com o outro. Há algo tão misterioso nisto, tão grande que muitas vezes ultrapassa quaisquer previsões antropológicas ou metafísicas que possamos arriscar. No encontro com o outro, eu me reconheço como alguém diferente daquele que me precedeu, mas ao mesmo tempo não posso deixar de reconhecer nossa semelhança ontológica.

De alguma forma, quando dou espaço ao outro dentro do meu espectro vital, o outro é capaz de entrar em mim e me transformar. Gabilondo diz: “A irrupção do outro, aquela que não ilude o movimento em direção a ele nem a experiência viva de separação e não possessão, pode chegar a transbordar aquilo que vai precisamente em direção ao outro e se tornar uma busca pelo futuro infinito”
[1].

Sempre que nos abrimos para o outro, pela própria diferença que se revela em sua pessoa, podemos começar um caminho que excede em muito nossas próprias expectativas. O quanto perdemos ao nos fecharmos ao encontro de tantos outros que podem renovar e dar um novo sentido à nossa vida!

Junto com várias dificuldades que temos dentro da cultura neoliberal, que promove o individualismo e a competividade, consideramos a digitalização da vida um desafio complexo.

O mundo dominado pela tecnologia, com o qual convivemos diariamente com nossos telefones celulares, nos separa cada vez mais dos outros. Não procuramos mais nos encontrar para nos enriquecer, mas apenas “contatar” uns aos outros através de redes sociais.

Escrevemos frases, colocamos fotos onde marcamos outras, enviamos mensagens escritas por wasap, mas não temos contato: não tocamos uns nos outros. Somos até preguiçosos para fazer ligações telefônicas.

Os emoticons tomam o lugar dos sentimentos. A tecnologia, que poderia nos fazer conhecer muito mais sobre os outros como um primeiro passo, acaba nos distanciando. Isso nos habitua a não fazer um esforço para enfrentar o desafio de estar no mesmo lugar durante o mesmo período de tempo e nos conhecermos melhor. Estamos nos acostumando a viver juntos.

Há vários anos, Ivan Illich disse: “Dependendo se eu o domino ou ele me domina, a ferramenta ou me amarra ou me separa do corpo social”[2].

A tecnologia está nos confinando cada vez mais a uma individualidade solitária.

Favorecido pelos telefones celulares, o ser humano é transformado em uma máquina dominada e manipulada por aqueles que criam sistemas de computador. Eles são humanos sem humanidade desenvolvida, são pessoas com pouca personalidade semeada neles. Eles são seres com poucos ou muito poucos laços, convencidos de que ter “amigos” nas redes sociais é suficiente.

Como Byung-Chul Han afirma: “Hoje em dia não queremos estar apegados a coisas ou pessoas. Os anexos são inoportunos. Eles tiram possibilidades de experiência, ou seja, a liberdade no sentido consumista”[3]. Isto se refere ao desejo de consumismo que nos domina e que não nos permite ver no outro alguém que pode me enriquecer, mas apenas algo que eu devo consumir, como outro produto.

Como os telefones celulares ou as roupas que compramos, as pessoas são escolhidas momentaneamente de acordo com o que é vantajoso para mim, mas assim que elas se tornam desnecessárias, eu as descarto. É a cultura descartável.

Consumimos pessoas até que nosso apetite esteja satisfeito, seja sexual, intelectual ou simplesmente no sentido utilitário.

Se nos deixarmos enriquecer pela presença dos outros, se aprendermos a tomar consciência de sua presença, então nossa vida tem a possibilidade de mudar e seremos capazes de superar a digitalização da vida que levamos.

Não mais andaríamos como seres itinerantes buscando ser valorizados, porque o reconhecimento do outro me leva a ser reconhecido por eles. Quando há esta troca de olhares, quando há um encontro, há um relacionamento. Não há relação com objetos tecnológicos, nem com aqueles que estão em contato com eles. Nisto há uma coisificação do outro através de um intermediário mecânico.

Por outro lado, quando o outro entra na minha esfera de preocupação, há um relacionamento. Nesse relacionamento há uma troca onde o outro me estende a mão e onde eu posso ir até ele. Como disse Martin Bubber: “O Tu vem ao meu encontro. Mas sou eu quem entra em relação direta e imediata com ela. Assim, relacionamento significa escolher e ser escolhido; é tanto um encontro ativo quanto um encontro passivo”[4].

Quando deixamos o outro entrar em nossas vidas de forma ativa, quando o encontro desejado acontece, não é mais apenas outro: é um Tu que me reconhece como um eu. E neste reconhecimento há a possibilidade de superar a coisificação. E neste reconhecimento surge a possibilidade de superar a coisificação.

Ante do Tu há olhares, há vozes, há carícias, abraços, beijos, que me fazem experimentar o calor na pele. O que não é experimentado através das redes sociais. “O mundo de hoje é muito pobre em aparência e vozes. Não olha para nós nem fala conosco. Ela perde sua alteridade. A tela digital, que determina nossa experiência do mundo, nos protege da realidade”[5].

O Tu que fala comigo, faz ressoar sua voz dentro de mim e exige uma resposta que me capacita a ajudá-lo e a colocar-me à sua disposição.

A tecnologia nos remete ao não reconhecimento do outro. Colocando-nos frente a frente, no mesmo espaço ou lugar, recebendo o outro, convertido por minha vontade em um Tu, podemos reverter a solidão em que nos encontramos. A partir disso, sou um Eu reconhecido por ele. Devemos reaprender a nos relacionar, a nos encontrar e a nos reconhecer. Nisto, podemos superar a digitalização em que vivemos hoje.

Fruto de um sistema capitalista, a única resposta que a tecnologia pode trazer é mais tecnologia. Ela é só uma ferramenta, não há consciência nela. Tudo que ela faz é fruto de ideias de gente como você. ( Luli Radfahrer,  professor-doutor da USP) Leia mais: https://www.neipies.com/voce-e-um-so/


[1] Gabilondo, Ángel, La vuelta del otro. Diferencia, identidad, alteridad, Madrid: Trotta, 2001, p. 204.

[2] Illich, Iván, La convivencialidad, Buenos Aires: Tierra del Sur, 2019, p. 31.

[3] Han, Byung-Chul, No-cosas, Madrid: Taurus, 2021, p. 26.

[4] Bubber, Martin, Yo y tú, Buenos Aires: Galatea Nueva Visión, 1960, p. 16.

[5] Han, Byung-Chul, Op. Cit. p. 71.

Autor: Diego Pereria Ríos

https://orcid.org/0000-0002-2202-915X

https://www.linkedin.com/in/diego-pereira-rios-62917713b/

Edição: Alexsandro Rosset

42 anos, uruguaio. Professor de Filosofia e Religião no Ensino Médio. Mestrando em Teologia Latino-Americana na UCA de El Salvador. Membro da Amerindia Uruguai, editor de Ariel Revista de originales de Filosofía, membro da RED CREA Cómplices Pedagógicos para América Latina, membro do Grupo Diocesano de Ecologia Integral "San Francisco", membro da Comunidade Bremen - Marcelo Barros no Brasil, escritor em Religión Digital, Espanha. Ganhou o 3º lugar no 1º Concurso Internacional de Ensaios de 2015 da REDLAPSI. Autor do livro "La fuerza transformadora de la esperanza" (Nueva Visión, 2016) e "En un camino liberador desde el Sur" (Rumbo, 2020). Contacto: pereira.arje@gmail.com

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