É a Escola Pública que realmente amamos?

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“A crise da educação no Brasil não é uma crise; é um projeto.” Foi ainda de Darcy Ribeiro, a famosa frase de 1982, soando quase como uma profecia: ‘Se os governantes não construírem escolas, em 20 anos faltará dinheiro para construir presídios.”(1) Imaginem após 42 anos?

Na última sexta (29 de novembro de 2024) tive o privilégio de passar uma hora em uma Escola Pública de Passo Fundo. Pelas suas cercanias, vivi um bom tempo da adolescência, subindo e descendo suas ruas ainda mal traçadas para alcançar a Avenida Brasil. Nosso sonho na época era o de estudar no CENAV, como se chamava nos anos 70. Mas não havia vagas para quem era desconhecido, recém-chegado do interior. Então fomos pagar para completar o ‘segundo grau’. Pagar não, financiar.

Passando em frente ao EENAV na sexta, lembrei de tudo e parei para apreciar as dezenas de alunos descendo suas escadas. Quanta gratidão pela Escola! Não pude acessá-la, pois a mim representava uma Escola Federal da época; exclusiva e inacessível. Indo para a Escola particular, deparei com amigos, fiz novos amigos, mas sempre sabendo que os motivos que os levavam para as salas eram diferentes dos meus. 

Créditos: Passo Fundo em Imagens (2022): https://www.facebook.com/passofundoemimagens

Então nós saímos desta escola gigante aos nossos olhos de então, para jogar vôlei com os amigos da CENAV.  Não usávamos uniformes.  Eles, sim. Os carros que estacionavam em frente a sua Escola eram diferentes dos que apanhavam meus colegas. E a defasagem entre nossos sonhos nunca parou de crescer.

E já se foram 40 anos sem nunca entender completamente porque as escolas representam tão fielmente o extrato das camadas as quais somos achatados e acomodados na sociedade.

As cenas me vieram à mente quando vi que seus alunos de agora não buscavam por maçanetas de carros, mas pelas mãos de suas mães e pais, para, em seguida, seguirem as suas casas, creio; caminhando.

Mas o motivo de minha visita a uma escola pública nessa semana foi um encontro com a sextos e sétimos anos através do projeto chamado Autor Presente. (2)  Ali, apresentamos às turmas inquietas pelo calor, um pequeno livro sobre rejeição e empatia, seguido de perguntas e respostas entre o autor e sua plateia.

Não há como não se emocionar ao sentir novamente o clima da Escola Pública, tão próximo. Não foi preciso ver carrões no estacionamento ou empresas de segurança guardando seus portões. O que eu vi foram sorrisos de professores e coordenadores, vi crianças que pulavam felizes, muitas sem celular, senti o acolhimento do que faz da escola sua razão principal de viver ou ser; o sentimento de ser incluído. É isso!

Sempre lamento quando sou obrigado a argumentar contra um tal de senso comum, que a educação paga é a mais organizada e ensina mais. Um grande equívoco! 

Aprende-se mais onde há uma dedicação unilateral de professores, geralmente desvalorizados, com seus alunos, em torno da sua realidade. Aprende-se onde há amor, e sobretudo, aprende-se mais onde o maior valor é a necessidade de transformação. Sem importar qual sua dimensão, a realidade que se impõe no dia a dia da Escola Pública é a verdadeira geradora de mudanças.

Por quais razões mudar quando se tem tudo o que se quer?  Quando todos os desejos podem ser atendidos de imediato? Mudança mesmo por quê?

O mundo da Escola Pública não é o mesmo da Particular. Nem pode ser. A sociedade real está aí representada, com todas as suas disfuncionalidades que a escraviza. Para alunos e famílias a que isso lhes diz respeito, que maravilha poder ter apenas um tênis, não ter mais do que algumas roupas e não ter de provar o tempo todo o que se pode comprar. É libertador não ter um celular da hora e não ter de competir para arrastar ou por ele ser arrastado, somente para mostrar à sua classe.

Na vivência de uma Escola Pública, para quem quer ver, vê-se um princípio de mudança que a sociedade brasileira faz questão de omitir: a desigualdade estrutural, consentida e planejada contra sua população. Ali é o templo das transformações. Na convivência dos amigos que têm quase sempre problemas comuns, neste espaço serão geradas as sementes da transfiguração, que, sem as quais, nunca teremos forças para romper as correntes que mantém o sistema educacional no fosso eterno de todas as carências.

Não é possível haver vida paralela.  Embora no seu tempo, e os seus desafios reais sendo demais para suas idades, sair de suas casas para um dia na Escola pode ser o melhor que se apresenta.  É nessa forja que nasce o desejo pessoal, imutável, da busca da superação de si mesmo.

Longe das agruras em seus lares, nem todos, evidente, estes alunos carregam as dores e preocupações de seus pais.  Como viver então para não mudar?

Por isso, em seus prédios e pátios há uma áurea malvista, mas que é de resiliência e indignação. Temos de ver estes alunos como nosso reflexo, de contradição e de buscas, pelas quais passamos, e não como nascidos fora da cerca. Sua paciência e devoção são excepcionais.

Não podemos fazer de conta, claro, que muitos estudantes comparecem sem vontade, sem propósito ou sem o mínimo de reconhecimento sobre o que lhes é oferecido. Mas isso não é exclusivo. As redes sociais já sequestraram seus desejos e os tornaram suas presas. Mas não todos! E sempre há tempo de alertá-los, pois no momento em que desistirem e forem sugados para dentro do mercado de trabalho, precocemente, cada ano passado longe de seus bancos será uma dor a arrastar.

Duvido sempre, que na hipótese de Jesus estar entre nós, não frequentasse a Escola Pública. Ali seria o seu lugar.

É a reunião da catarse social, onde se vê a realidade de um país que anda na direção contrária, em achar que sem educação de qualidade, com apoio e verbas, vai seguir muito longe.

Na Escola Pública, mesmo com todo o descaso em prioridades vitais, os seus pátios são formadores de poetinhas, pequenos escritores, grandes professores, idealizadores de todos os futuros distintos, pois os que ali frequentam, não tem muitos médicos ou advogados na família em que possam se espelhar.

Registro de atividade Autor Presente com comunidade escolar Escola Estadual Adelino Pereira Simões. Fotos: Marciano Pereira

Sagrada Escola Pública onde os educadores são verdadeiros heróis, os pais, sobreviventes, e os alunos, quase sempre felizes, formam a comunidade da resistência em uma escala social mal construída e reprodutora das mesmas condições dos seus avós.

Quem acha que a transformação de uma sociedade refém da condição colonial é possível, que considera que a educação reparadora pode acolher qualquer pessoa, independente do mundo coisificado e sua felicidade precificada, deveria olhar com amor extremo aos que tem em uma simples ida à escola, a sua maior emoção do dia.

A Escola Pública é o antídoto da ideia de que mais presídios são necessários. E o próprio Prof. Darcy, lutava pela ampliação do seu espaço, como que um dos últimos a gritar em sua defesa. Hoje, ao contrário, será no seu meio em que se dará a nossa redenção, quem sabe, a desconstrução deste projeto de alienação e descaso da Educação e seus programadores.

Pense em um futuro de Escolas lindas, seus muros bem pintados, com professores seguros de que valeu a pena e, com seus alunos, sobretudo, certos de que representam o fim da escassez espiritual e material em suas vidas e famílias.

Antes de encerrar meu diálogo com estes queridos e atentos pré-adolescentes, veio de um deles a pergunta mais inteligente:

– Há algum livro em que o senhor já se arrependeu de escrever?

Há inquietação neste questionamento. Não partiu de um colégio com pompa, espaçoso e bem pintado, a melhor questão que já ouvi.

Que ótimo! Quantas certezas levei comigo nessa tarde!

A partir dos pátios e salas da Escola Pública, aguardem a mudança que precisamos!

Escrevam aí!

Referências:

1.Darcy Ribeiro (1922-1997) foi um dos principais pensadores da Educação Brasileira, Fundador da Universidade de Brasília, Ministro da Educação, idealizador dos CIEPs, escolas de tempo integral.

2. Gratidão aos mestres, Marciano Pereira e Vanusa Kolwski, pela coordenação do encontro, sua dedicação e carinho para que de fato acontecesse.

Autor: Nelceu A. Zanatta. Também escreveu e publicou no site “Escola perdida, alunos ausentes”: www.neipies.com/escola-perdida-alunos-ausentes/

Edição: A. R.

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